Como falei nos últimos textos em confusão de terminologia de carnes, lembrei-me de outras questões de nomenclatura. Não vou falar de coisas recentes, a meu ver reveladoras de pouco rigor de cultura gastronómica, como seja, por exemplo, o uso abusivo que alguns chefes respeitáveis fazem de termos consagrados, como confitado, a confundir o consumidor. Noutros casos, a confusão é antiga e difícil de resolver.
Lembrei-me de coisa que sempre me despertou dúvidas, o nome consagrado (e escrito) de um típico doce-frito da minha ilha, a malassada. Nos Açores, os fritos não são de Natal, mas sim de carnaval. Sonhos, rabanadas, filhoses, coscorões, rosas do Egito e, em S. Miguel, as malassadas. Fazem-se com bastante farinha com fermento, açúcar (30 vezes menos), ovos, manteiga e/ou banha e leite. Depois de amassadas e levedadas, são fritas completamente imersas em óleo muito quente.
Também se fazem na Madeira, sinal da sua antiguidade na tradição culinária portuguesa, neste caso aparentemente perdida no continente. Em compensação, os ilhéus emigrantes popularizaram-nas nos EUA, até no Hawai. Para americanos, é coisa que cai bem, parece donuts.
Na pronúncia típica micaelense, são “malassadas”. Ortograficamente, sempre vi assim e é assim que Maria de Lourdes Modesto escreve, embora Augusto Gomes, notável recoletor de receitas açorianas, escreva “mal-assadas”. E é termo que figura nos nossos bons dicionários, mas com significado totalmente diferente. Veja-se no Cândido de Figueiredo: “malassada: ovos, que se batem e se fritam ao mesmo tempo”. Para mim, isto parece obviamente a descrição dos ovos mexidos.
Augusto Gomes defende a origem “malassada” com a referência mais antiga que também conheço, uma passagem do “Itinerário” de António Tenreiro (1529-…) em que se diz que “as iguarias que se deram geralmente foram carneiro e arroz guisado, tortas e mal-assadas de ovos com açúcar por cima”. Parece-me que se está a referir é aos ovos mexidos mal-assados dos dicionaristas, neste caso polvilhados com açúcar (que horror!…).
Esta questão, que já abordei antes, já não sei onde nem quando (googlem…) saltou-me agora à memória por causa de uma das muito boas notas de Virgílio Gomes, de que respigo:
“Um dos elementos diferenciadores da doçaria conventual para a doçaria popular é que esta utiliza sempre, na receita, mais farinha do que açúcar. O açúcar era um produto de elevado preço o que levou vários reis a legislar para reduzir o seu consumo. (…) A doçaria popular era confecionada com melaço.”
Por isto, palpita-me que a designação das célebres malassadas micaelenses vem de corruptela de melaçadas. Teria quase a certeza se não fosse um óbice das regras da linguística, embora eu seja leigo nisso. Mas creio que é vulgar, e naquilo em que tenho estudado como amador a fonética micaelense, o “a” átono passar a “e” mudo mas não o inverso, como seria nessa passagem de “melaçada” para “malassada”. Há por aí algum linguista que dê a sua opinião?
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