sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mudam-se os tempos...

Li algures, sobre lapas e os Açores, que “existem muitas receitas para preparar-las [sic] e até há quem só goste delas cruas e vivas, ao natural. Mas a forma mais popular de as cozinhar consiste em grelhar-las [sic, novamente; assim como, na receita, mais do que uma vez, "colocar-las". Isto escrito por brilhante - segundo o seu CV - licenciada em letras e consultora de alta entidade oficial]”. 

Se isto tivesse sido escrito por quem debita de longe, sem saber, sobre queijinhos frescos e malagueta, vá lá. Neste caso, é por uma residente nos Açores - o que tem menos desculpa - mas interpreto isto como coisa não muito negativa, apenas efeito dos tempos. As pessoas conhecem é o seu tempo, não estudam o que foi o percurso até aí chegarem. Também confundem “habitual”, "usual”, “vulgar”, etc., com “popular” (como se diz no tal texto, quando este adjetivo, em gastronomia, tem conotações muito complexas).
Por simples efeito do que direi a seguir, o hábito do consumo das lapas mudou radicalmente nos Açores. Ao contrário do que escreveu a autora daquela frase, há algumas dezenas de anos, quando eu era miúdo, ninguém comia lapas grelhadas. Aliás, grelhar fosse o que fosse era coisa desconhecida nos Açores. Quem as comia cruas, as lapas, não eram “alguns que até há quem”. 

As “mulheres das lapas” deixavam os seus homens apanhadores a descansar depois da noite de frio, risco de queda das rochas, molhados com as vagas, e iam para a cidade (apesar de tudo, como me dizia a minha mãe, profunda conhecedora deste meio, no seu missionaridado cristão-progressista, sempre com tempo para uma "rapidinha" a fazer família de dúzia de filhos). Sentavam-se sonolentas -como me lembro, ai a minha gente, o meu povo! - com o cesto das lapas vivas à soleira da porta das tabernas (muitas vezes com o pitcheno ao colo adormecido com um pouco de pão molhado em vinho de cheiro oferecido pelo taberneiro). "Gente feliz com lágrimas", não é, meu caro João de Melo?
Compravam-se-lhes (como se viu atrás, os verbos são traiçoeiros, mesmo para alguém de letras!) as lapas por tuta e meia e comiam-se cruas. Excetuava-se a lapa miúda, para arroz de lapas, pão de lapas, etc. E a lapa com muita alga (“musgo”), para o excelente Afonso de lapas - que eu imito, aldrabadamente, com algas orientais aromatizadas a mar por banho prolongado, a quente, em “fumet” e um pouco de caldo de marisco.
O que mudou tudo foi o defeso muito rigoroso, talvez nos princípios dos 80s, não me lembro exatamente. Acabou a lapa crua e começou a importar-se lapa congelada da Madeira, onde a apanha era relativamente permitida. Obviamente, esta lapa não podia ser comida crua e começou com isto a grande voga da lapa grelhada. Nada mais simples, como explicação histórica, nada de "gosto popular". 

Claro que, não podendo as coisas voltarem atrás, há que considerar algum benefício. Pela experiência de cá de casa, até acho que, a ter-se mantido o hábito da lapa crua, muitos turistas não a comeriam. Como disse, é coisa que faz enjoar a morena, embora se babe por ostras cruas. Contradições… (ou, a sério, a importância da textura, para um gosto refinado).
E, quanto a açorianos, será só “há alguém que goste”? Ainda há um ano, no mais conhecido restaurante de peixe e marisco terceirense, em S. Mateus, vi desaparecer em minutos, por encomenda de gente local a correr para o balcão (e eu também), um alguidar que tinha chegado com grandes lapas vivas.

Nota - O passareco da figura é uma pega. "Honi soit qui mal y pense". Evoca só o palrar sem substância. 

1 comentário:

  1. Muito bem. A facilidade com que escreve nestes tempos é surpreendente e, lamentavelmente, pela negativa. Um abraço

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