sexta-feira, 4 de março de 2011

Coisas que vou lendo (3)

Um velho amigo meu, bloguista de muito sucesso, usa frequentemente como título genérico “Oh Simple things”. Uso-o nestas conversas gastronómicas e culinárias para chamar a atenção para coisas simples (por exemplo, o cozido) que são aquelas que não permitem rodriguinhos a disfarçar: ou se tem boa técnica ou é o desastre. Isto é particularmente importante no caso de tradições culinárias distantes mas que importámos como moda.  O que mais se lê são receitas “exóticas”. Defendem os autores porque nem sequer há uma velha criada que, no caso de receita tradicional portuguesa, diria, “ó senhora, isto é uma aldrabice”. 
Claro que não é só a net. Infelizmente, são muitos restaurantes a aproveitar a escassa cultura gastronómica de muitos clientes, principalmente, repito, em relação às cozinhas estranhas. Mas, ao menos na net, as pessoas deviam poder ter acesso fácil a críticas e contra-críticas, a fontes de informação, poder exercitar a massa cinzenta sem se deixarem ir logo por “mas que delícia, minha querida”. Lamentavelmente, não. As pessoas que andam a procurar receitas na net são as que querem comer um pouco melhor do que o "fast food" ou o congelado de supermercado. Coisa louvável, que me merece muito respeito. Eu sei que, com o meu estilo um pouco elaborado, não as ajudo muito, mas ao menos procuro defendê-las das aldrabices a que estão sujeitas.
Suspeito de que, em muitos casos, visitarão blogues que pensam estarem a fornecer-lhes ideias originais, criativas. Engano. Ostentam pergaminho, é “adaptação” de grande receita. Todavia, em 99% dos casos, quando lerem “adaptação”, na net das receitas, é pura e simples cópia, com o ridículo de depois protestarem contra o “plágio” de outras tias que lhes copiam a receita sem citarem a “autoria”. Em regra, a fonte é um sítio comercial americano, do clube dos Jamies e das Nigellas, porque, honra seja feita à sua cultura gastronómica, não há muita coisa destas com localização francesa, espanhola ou italiana. Googlem e vejam se não tenho razão. Triste é que o pior vem de uma paraiso gastronómico, o Brasil (mas como muita outra porcaria da net, parece que os nossos irmãos não têm mais que fazer do que intoxicar a net).
Assim, desejando muitas pessoas receitas pouco comuns, mas simples e fáceis, acabam por encontrar deturpações complicadas, fantasistas, de coisas consagradas como “Oh Simple things”. Por exemplo, uma carne Stroganov (é assim que se deve escrever, nome da família aristocrática russa cujo cozinheiro a registou, mas é história longa, para mais tarde).
Uma excelente senhora portuguesa que convide um casal amigo de origem eslava e lhe sirve um “strogonoff” (sic) como o que se segue, altamente elogiado na net, veria sorrisos delicados mas amargos. Veja-se, espantoso: fritura, em azeite (!), da carne cortada em cubos; tempero com alecrim (!!); adição de molho de tomate (!!!), milho (!!!!) e nata, muito puré de batata; polvilhado com muito queijo ralado (!!!!!) e ido ao forno (!!!!!!).
Stroganov, isto? Em descrição muito breve e simples, o stroganov, que já vem descrito em Escoffier, é carne de lombo cortada em pequenos pedaços muito finos, como lâminas (“émincé”), que ficam logo fritos em meio minuto de salteio em manteiga, com louro, sal e pimenta preta moída a fresco. Cogumelos salteados no suco da fritura da carne. Refogado ligeiro de cebola, acrescentado dos sucos e de nata azeda (como não a temos nem sabemos fazer, mistura em partes iguais de nata fresca e de iogurte simples, com sumo de limão a gosto), mais os cogumelos. Tudo apurado e a envolver no fim os bifinhos. Também já comi, por aquelas bandas de leste, com um toque de cornichões de conserva, a ir muito bem. Obrigatoriamente, acompanhamento muito simples de arroz branco ou de puré de batata. Dêem a provar à vossa empregada ucraniana e vão ver o que ela diz.
Isto tem alguma nem que remota semelhança com o tal "strogonoff" da blogosfera?
Será que é realista eu pensar que posso ajudar um pouco à “defesa do consumidor” (neste caso quem procura informação na net), quando me defronto com uma enorme feira de ciganagem (sem ofensa xenófoba)?

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