Perco-me por caça, coisa de menino regalado com ofertas de “tio” caçador viciado, e com tia especialista em ensinar-nos a cozinhar o produto do domingo de tiro ao bicho. Até já comi morta de chumbo, excelente, uma que quase toda a gente só conhece de criação, a galinhola. E anoto que tenho experiência de açoriano, que caça lá é diferente. Há coisas que não conheci até aos meus 16 anos, lebre e perdiz, porque lá na ilha só coelho bravo e codorniz. Depois, em Angola, caça grossa, pacaça, sofro, melhor de todas a palanca (proibida, mas tropa não obedecia), outros variados antílopes, javali africano (não é o nosso!), que delícia de bifes, de assados ou de guisados! Também, em Angola, capota (a galinha pintada do mato), cabrito selvagem para a caldeirada e até macaco, não falando nos filetes de jacaré. Não estou a brincar...
Há uma exceção. Nunca comi faisão de caça genuína. Comi desde miúdo, nos Açores, mas de criação, numa quinta de amigos da minha avó ("Pinhal da Paz"). Mesmo assim, raridade, porque eram só poucas dezenas de bichos. Hoje compro-os cá, congelados, preferindo uns italianos importados. Foi o meu jantar de Páscoa, com um pormenor bastante “démodé”, já verão. Há coisas que me suscitam tanto a imagem de uma ceia no Maxime, depois de ver dançar La Goulue ou Jane Avril, com Valentin le désossé, que me dá para só desenhar academicamente correto, como no velho tempo do nosso “desenho de estátua”, sem um risco de carvão fora dos cânones - coitada da minha primeira namorada, que andou lá por S. Francisco ao Chiado. Toulouse que ficasse no Moulin a rabiscar coisas acompanhadas de absinto.
Nestas alturas, como neste caso do faisão, a minha criação fica estreitada pelas regras do classicismo. Há alturas para ver o elétrico desejo e há alturas para ver Hamlet. Não fica aqui a receita, reservada para quem se quiser dar ao trabalho de a ir procurar onde sabe que as tenho, e quem não sabe que se lixe!. É que não me quero sujeitar a que qualquer tia diga “que coisa pesporrenta, não há pachorra, ó meninas, o gajo baba-se com a técnica”. De fato, não há pachorra para uma hora de compras com sentido crítico, uma hora para fazer geleia de carne como se deve, uma hora para o estufado, ensaios sucessivos - uma colher disto agora outra depois - para o molho sair equilibrado.
Isto tem a ver com o que disse no último “post”. Caldo Knorr e produtos industriais, porque não, desde que bem trabalhados - o que não é coisa elementar? Mas em dia de festa, em jantar especial para quem tudo merece, umas horas de trabalho valem muito mais do que o dinheiro de comprar excelentes chocolates. Mais uma mesa bem posta, com as pobres pratas da família, bem vestidos mesmo só para olhar um para o outro, velas acesas, Murganheira super-reserva bruto 2004, a quadragésima muito em surdina, charme q. b.
Nota 1 - Claro que o jantar também meteu sopa. Deixo aqui umas dicas, mas só entendíveis por quem foi ler a receita do faisão. A sopa era um creme banal de alho francês com leite (nata está-me proibida) e fécula de batata. A mais, subiu o nível juntar umas boas colheres do puré de legumes estufados e miúdos, e de geleia de carne. “It’s the difference, stupid!”.
Nota 2 - Claro que as mãos de novilho, com parte da geleia, deram o excelente guisado/gratinado que era, até eu escrever, “segredo” da minha família. Tudo se aproveita!
Nota 3 - A minha querida jovem amiga M (que não foi quem jantou comigo!…) disse-me que tinha ouvido num programa do Jamie Oliver uma jovem inglesa dizer que não sabia como acender o seu fogão porque, em casa, só usava o micro-ondas!
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