Como escrevi há tempos, sou bastante ignorante das cozinhas moçambicanas - colona e indígena - ao contrário do que se passa com a cozinha angolana. Neste caso, escrevo no singular, porque houve uma grande aculturação gastronómica, não há grande diferença entre a cozinha dos nativos e dos colonos, são mais séculos de colonização e miscigenização, as "gloriosas famílias" de Angola que não há em Moçambique da colonização tardia de funcionários - sem contar com os "prazos" e as companhias magestáticas. Volto aos camarões, em relação a Moçambique e a petiscos dos seus colonos.
Os camarões ditos à laurentina, do “Coisas boas” (a bíblia das cozinheiras portuguesas em Moçambique - e não era nada má!) são coisa muito generalizada. Até eu os fazia quando estava em Angola, lá chegaram. Hoje faz-se em qualquer cervejaria de Lisboa, camarão frito. Camarão grande (20/30) temperado com alho fatiado, sumo de limão, sal e piripiri (não sei como se chamava em Moçambique; em Angola era gindungo), depois frito em óleo ou azeite.
Relacionando camarões e "Coisas Boas", até deixo nota de uma receita que vale a pena fazer. Nada de requinte ou de grande originalidade, mas que merece experiência de quem quer variar um pouco. Camarão assado, com uma marinada simples, mas com o toque de diferença do açafrão (açafrão amarelo indiano, curcuma) - agradeço ao D o envio da imagem. Cozinha de tias, como eu digo hoje? Não, cozinha de "senhoras de sociedade", com algum bom gosto. Tias hoje são outra coisa... Um dia destes conto uma história ridiculamente deliciosa de uma advogada de Cscááás, que se referia a uma colega em tom depreciativo: "ela julga que é tia? Tia sou eu, não é qualquer uma de S. Domingos de Rana". Gente fina...
Desperta-me mais curiosidade o camarão à Nacional, nome de uma conhecida cervejaria do Maputo, então Lourenço Marques, hoje sede da IURD. Sendo ícone propagandístico, provavelmente não forneciam a receita. Por isto, fora uma base comum muito geral, o que se lê hoje na net são descrições de quem os comeu e até, os anos vão passando, de filhos já cá nascidos que ouvem as memórias familiares.
Desperta-me mais curiosidade o camarão à Nacional, nome de uma conhecida cervejaria do Maputo, então Lourenço Marques, hoje sede da IURD. Sendo ícone propagandístico, provavelmente não forneciam a receita. Por isto, fora uma base comum muito geral, o que se lê hoje na net são descrições de quem os comeu e até, os anos vão passando, de filhos já cá nascidos que ouvem as memórias familiares.
Isto da memória é coisa essencial na culinária, mas muitas vezes desvalorizada. No meu caso, tanto no que respeita a receitas reservadas de família como a receitas tradicionais açorianas, consegui reconstituir algumas até perdidas por me gabar de ter sido dotado de uma grande memória gustativa. Claro que também recorro à comparação com outras memórias igualmente boas, nomeadamente a dos meus irmãos. É que nos falha sempre alguma coisa, discutimos desvios de memória, testamos e geralmente chegamos a conclusão consensual.
Isto diz respeito aos sabores. Mais difícil é identificar, nessa sinfonia, as diversas melodias e arranjos, isto é, os temperos e as técnicas que resultam nesses sabores. Aí, já é preciso algum traquejo e sabedoria, alguma capacidade de reconhecimento de sabores. O ubíquo polvo guisado em vinho, açoriano, numas ilhas leva cravinho, noutras pimenta da Jamaica. É fácil distinguir? Todavia, isto não é exclusivo de cozinheiros experientes. Ainda há tempos, cá em casa, um grande amigo que não sabe estrelar um ovo comeu as minhas favas de taberna micaelenses e disse que aquilo levava castanhas. Errado, mas com explicação fácil para a sua boa observação. Alguém adivinha? De prémio, uma queijada da Vila.
Muito mais difícil, como na experiência que ontem fiz de camarões à Nacional, é quando nunca se comeu o prato e só se pode ir pelas impressões que se colhem de quem bem os conheceu, e não possui mais do que uma receita muito genérica. Aqui vai o que fiz, para duas pessoas. Começo por confessar uma “aldrabice”, porque tinha pouco tempo disponível para a preparação. Em vez de camarão médio-grande, 20/30, que parece que era o mais usado na cervejaria, usei camarão tamanho 10, seis bichos de 100 g cada, para duas pessoas. Mas eram "camarões do canal" (indicus), não camarões-tigre, excelentes mas coisa diferente.
O que direi agora, indo só pela síntese crítica das várias receitas recolhidas, não é o que no fim escrevo como receita definitiva, depois direi porquê. Arranjei os bichos e temperei-os com a pasta que descrevo a seguir mas sem vinho branco e sem azeite. Levei ao forno, regando com um pouco de cerveja - o que verão que não incluo a seguir na receita final. Deixei assar até a casca estar bem vermelha e servi, embrulhados no molho, com batatas “fritas no micro-ondas” - saúde manda - que também já tinham servido para os "camarões dos dias do fim".
Afinal, já bem comidos e apreciados os camarões, um amigo que por lá andou deu-me uma dica preciosa. Milagre, ele tem uma receita genuína, não sei de quem, só sei que da pessoa que, há longos anos, a forneceu, de origem, ao gerente da cervejaria, o Sr. Emílio. Se este a seguiu religiosamente é que não posso garantir. A receita não indica quantidades, coisa vulgar nesse tempo. Elas são escolha minha.
600 g de camarão 20/30, 4 dentes de alho grandes, 1 c. sobremesa de sal grosso, 1,5 c. chá de piripiri fresco picado fino (cá, seco moído), sumo de meio limão, 75 g de manteiga (ver nota abaixo), 2 c. sopa de azeite, 3 c. sopa de vinho branco. Manteiga e limão.
Cortar os camarões quase completamente pelo dorso, retirar a tripa e espalmá-los. Preparar no almofariz pasta de sal, alho, azeite, piripiri, sumo de limão e vinho e incorporar bem na manteiga. Esfregar bem a carne dos camarões espalmados e deixar a temperar, pelo menos meia hora. Levar ao forno pré-aquecido a 200º, em tabuleiro, cerca de 15 minutos, a avermelhar bem a casca, pincelando-os algumas vezes com o molho. Rejeitar todo o molho. Servir secos, com molho a fresco, tradicional, de manteiga e limão, em partes iguais. Há quem prefira acompanhar com batata frita, mas mais genuíno é o arroz branco.
Nota - Hoje evita-se a manteiga na cozinha. A minha dietista só me permite, diariamente, uma colher de chá de manteiga, a barrar pão ou torrada. Há quem a substitua por manteiga magra. Se para barrar, muitas vezes é ineficaz porque, tendo menos sabor, as pessoas duplicam a dose e dá o mesmo resultado que usar manteiga. Para aquecer, asneira. A manteiga magra sofre um tratamento que impede a sua fervura ou uso culinário. A única substituição admissível é por margarina dietética culinária.
À margem - Saia professorice. Em relação a termos angolanos, de kimbundo (o k já faz parte da nova ortografia), há palavras que passaram para a grafia com “g” (gindungo, a malagueta), outras com “j” (jinguba, o amendoim). Na origem desta diferença na fixação medieval da ortografia portuguesa, está a diferença de pronúncia, [j] simples como “j”, [dj] como “g” antes de “e” e “I”. Será esta a diferença da grafia dessas palavras culinárias angolanas? Alguém que saiba kimbundo pode esclarecer?
À margem - Saia professorice. Em relação a termos angolanos, de kimbundo (o k já faz parte da nova ortografia), há palavras que passaram para a grafia com “g” (gindungo, a malagueta), outras com “j” (jinguba, o amendoim). Na origem desta diferença na fixação medieval da ortografia portuguesa, está a diferença de pronúncia, [j] simples como “j”, [dj] como “g” antes de “e” e “I”. Será esta a diferença da grafia dessas palavras culinárias angolanas? Alguém que saiba kimbundo pode esclarecer?
O segredo dos camarões à Nacional morreu com o Sr. Vieira
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