Ao prometer uma receita semanal, disse que tanto podiam ser de minha invenção como de património familiar. Para começar, julgo que devo dar primazia a este património, não só por valor estimativo mas principalmente pela razão prosaica de me ter caído sob os olhos, no talho, uma coisa que me apeteceu e que sabia que ia deliciar a morena.
A divulgação do património culinário familiar é coisa relativamente recente e conheço quem ainda não o faça, com a noção enraizada do "segredo de família". Foi coisa resolvida na minha, ainda com o peso da opinião da minha mãe, quando publiquei o meu livro "O gosto de bem comer", que já incluía bom número desses "segredos". Entendemos que a melhor homenagem a quem foi construindo essa herança, ao longo de gerações, era dá-la a conhecer. Ainda por cima, ficando para nós a última palavra, no sentido de que, em muitos casos, não basta a receita, é preciso a pedra de toque do sabor de infância e a experiência antiga de saber fazer, por muito ter visto fazer.
A divulgação do património culinário familiar é coisa relativamente recente e conheço quem ainda não o faça, com a noção enraizada do "segredo de família". Foi coisa resolvida na minha, ainda com o peso da opinião da minha mãe, quando publiquei o meu livro "O gosto de bem comer", que já incluía bom número desses "segredos". Entendemos que a melhor homenagem a quem foi construindo essa herança, ao longo de gerações, era dá-la a conhecer. Ainda por cima, ficando para nós a última palavra, no sentido de que, em muitos casos, não basta a receita, é preciso a pedra de toque do sabor de infância e a experiência antiga de saber fazer, por muito ter visto fazer.
Começo por uma mão de vaca única, que nem sei bem como chamar. Gratinada, como vai em título, talvez seja o melhor adjetivo, porque é a única que conheço que vai ao forno. Não sei porquê, em miúdo detestava este prato tradicional de família, que hoje me delicia as papilas gustativas. É receita estranha, do meu património familiar terceirense, mas sem raízes facilmente identificáveis, a não ser em coisas francesas ou de cozinha internacional de hotel que o trisavô patriarca levava com vestidos e rendas, de volta da visita à civilização, ao arribar ao Cabo da Praia. Neste caso, nem posso invocar uma óbvia origem francesa: das oito receitas de mão de vaca de Escoffier, mais a do Larousse, mais algumas de "sites" franceses de boa qualidade, nenhuma se assemelha a esta.
Não lhe encontro parentesco nas recolhas de cozinha tradicional da Terceira nem em registos de cozinha continental. Nos Açores, mão de vaca é um guisado com batatas, num caso recolhido juntando ervilhas; no continente com feijão ou com grão (diferença que se prolonga para a dobrada, no continente com feijão, nos Açores com batata). E esta mão de vaca vai ter continuação, dessa vez em receita minha, embora com base clássica. Que fazer com o resto, abundante, da geleia de carne? Esperem pela minha galantina, feita hoje mas descrita só para a semana.
Para 4 pessoas. 2 mãos de vaca, cerca de 2,5 kg, de preferência dianteiras (opcionalmente 3 de vitela, mas tendo de se ajustar os tempos de cozedura, por se desfazerem mais facilmente), 1 cebola, 2-3 dentes de alho, 1 folha de louro, sal, 8 grãos de pimenta preta, 5 grãos de pimenta da Jamaica, 1 folha de louro, um raminho de salsa. Para o guisado, 3 c. sopa de manteiga (mais correto, hoje, de margarina dietética), 1 cebola, 2 dentes de alho, 1 c. sopa de polpa de tomate ou 1 c. chá de concentrado de tomate, 1 raminho de salsa, sal, tomilho, 8 grãos de pimenta preta, 6 grãos de pimenta da Jamaica, 3 limões galegos (na falta, 1 limão, 1 lima e meia laranja). Tosta ralada.
Em panela de pressão (contra a tradição, mas conservadorismo exagerado é burrice), colocar as mãos e os temperos da cozedura, cobrir com água e cozer durante 30-40 minutos. Remover as mãos e cortar em pedaços de cerca de 3-4 cm de lado. Coar o caldo e reservar. Refogar a cebola picada muito fino, mesmo pisada a fazer pasta, com o alho. Quando alourada, juntar o tomate e os temperos e dar mais algumas voltas, acrescentando depois os pedaços de mão de vaca. Voltear bem, demoradamente, até a pele ficar bem alourada. Acrescentar caldo, sem ficar muito aguado e deixar apurar. Se necessário, ir acrescentando mais uns goles. No fim, juntar o sumo de limão galego.
Passar para assadeira não untada (o molho não permite mais gordura) e polvilhar com tosta ralada. Levar ao forno a 200º, até bem gratinado. Na tradição de família, acompanha-se com puré de batata com azeitonas e com fatias de pão frito. Também fica muito bom com uma coroa de puré, consistente, na assadeira, regada com caldo da mão de vaca e também polvilhada com tosta ralada.
Já vou nos 55 e só aos 54 tomei coragem para experimentar a mão de vaca, meu paradigma do horror em matéria alimentar. De tal sorte, que sendo a casa dos meus pais pouco dada a liberalidades e dispensas à sagrada hora da refeição familiar, a única exceção admitida era precisamente no dia do terrível (para mim) prato, em que eu era autorizado a comer qualquer outra coisa, na cozinha, pois só a vista do tremeluzente molho me provocava um incoercível vómito.
ResponderEliminarApós semanas de preparação mental, já com a dita no congelador, à espera, lá a fiz e experimentei e posso agora dizer que já sei do que falo. A mão de vaca era a única coisa de que eu dizia não gostar sem nunca ter provado; agora já sei!