Macaronésia é, como se sabe, o conjunto dos quatro arquipélagos atlânticos, Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. A ideia vem de uma antiga lenda grega, das ilhas afortunadas, eventualmente os restos da mítica Atlântida (gostava de voltar a ler o álbum de BD da minha infância, do Prof. Mortimer, sobre a Atlândida, aonde ele chega partindo de uma gruta de S. Miguel). De facto, fora isto, pode-se duvidar do fundamento científico de agrupar os quatro arquipélagos, principalmente da inclusão dos Açores.
Têm os quatro em comum a sua origem vulcânica, mas em eras muitos diferentes. Ela é evidente, na orografia, nos Açores e nas Canárias, mas menos nos mais antigos, Madeira e Cabo Verde (exceto no Fogo). Só os Açores se situam na crista dorsal. Os outros arquipélagos emergem da placa africana.
(Já agora, abro parênteses para uma curiosidade. São os Açores terra europeia? Claro que historicamente, etnicamente, politicamente, são Europa e costuma dizer-se que as Flores são o extremo ocidental da Europa. Geologicamente, não é verdade, porque o grupo ocidental dos Açores emergiu no lado ocidental do “rift”, ao contrário das outras sete ilhas. O Corvo é o ponto mais oriental da América).
Também a flora e a fauna têm relações, embora com variantes decorrentes de tão grande dispersão em latitude. Laurissilva, dragoeiro, muitas espécies endémicas, os milhafres ainda hoje comuns que foram vistos erradamente como açores e deram nome às ilhas, são regra geral, mesmo em Cabo Verde hoje semi-desértico, onde registos antigos dizem que havia toda uma grande mancha verde de "mato", plantas baixas (equivalente à laurissilva?), antes do desbastamento e das cabras.
(Já agora, abro parênteses para uma curiosidade. São os Açores terra europeia? Claro que historicamente, etnicamente, politicamente, são Europa e costuma dizer-se que as Flores são o extremo ocidental da Europa. Geologicamente, não é verdade, porque o grupo ocidental dos Açores emergiu no lado ocidental do “rift”, ao contrário das outras sete ilhas. O Corvo é o ponto mais oriental da América).
Também a flora e a fauna têm relações, embora com variantes decorrentes de tão grande dispersão em latitude. Laurissilva, dragoeiro, muitas espécies endémicas, os milhafres ainda hoje comuns que foram vistos erradamente como açores e deram nome às ilhas, são regra geral, mesmo em Cabo Verde hoje semi-desértico, onde registos antigos dizem que havia toda uma grande mancha verde de "mato", plantas baixas (equivalente à laurissilva?), antes do desbastamento e das cabras.
E não têm os macaronésios uma cultura comum? Claro que sim, descontando as rivalidades com raízes históricas antigas entre açorianos e madeirenses e o relativo desconhecimento mútuo entre os ilhéus falantes de português e de espanhol. Claro que sim, na trasbordante simpatia das gentes, naquela coisa indefinível com que a minha mulher sorri ao me dizer "ilhéu tosco".
Por isto, em qualquer encontro (como eu há poucos meses com um grupo de universitários canarinos) vem logo ao de cima a insularidade. E com efeitos práticos. Quem quiser compreender, em termos pragmaticamente políticos, a alarvice de Jardim, em contraponto com uma forma especial, também minha, de elaboração intelectual, anteriana, de João Bosco (meu antípoda político mas intelectualmente próximo, desde a juventude), tem de perceber o que é a insularidade. Eles são as duas faces da mesma moedas, mas uma moeda só de circulação local.
Comum mesmo, para o que aqui conta de nota gastronómica, é o facto de, com exceção das Canárias e dos seus guanches, todos os arquipélagos terem sido povoados de novo, por gentes que trouxeram das metrópoles (Portugal e Espanha não muito diferentes gastronomicamente) os seus usos culinários ou que os misturaram com cozinhas mais pobres, como a dos escravos negros idos para Cabo Verde.
Por isto, em qualquer encontro (como eu há poucos meses com um grupo de universitários canarinos) vem logo ao de cima a insularidade. E com efeitos práticos. Quem quiser compreender, em termos pragmaticamente políticos, a alarvice de Jardim, em contraponto com uma forma especial, também minha, de elaboração intelectual, anteriana, de João Bosco (meu antípoda político mas intelectualmente próximo, desde a juventude), tem de perceber o que é a insularidade. Eles são as duas faces da mesma moedas, mas uma moeda só de circulação local.
Comum mesmo, para o que aqui conta de nota gastronómica, é o facto de, com exceção das Canárias e dos seus guanches, todos os arquipélagos terem sido povoados de novo, por gentes que trouxeram das metrópoles (Portugal e Espanha não muito diferentes gastronomicamente) os seus usos culinários ou que os misturaram com cozinhas mais pobres, como a dos escravos negros idos para Cabo Verde.
Depois, sendo todas as ilhas porta-aviões ancorados no fundo do mar, o enorme trânsito de produtos alimentares entre América e África. Nos quatro macaronésicos, com exceção da mandioca em Cabo Verde, vinda de África, e sem pensar nas frutas, predomina a importação de produtos americanos, comuns a todos os arquipélagos, com destaque para batata doce, inhame, milho. Também, africanas, as malaguetas, mas curiosamente com muita diferença entre as ilhas.
O atum é elo de união de todos os arquipélagos. Cozinha de atum, para um ilhéu como eu, dá um tratado. Fica para depois.
No meu regresso de férias cabo-verdianas, fiz um estudo comparativo, tão exaustivo quanto possível a um amador, sobre os ingredientes e as cozinhas macaronésias. Encontrei diferenças enriquecedoras, mas ressaltou do quadro uma enorme matriz comum. A partir dela, fiz o exercício que se segue.
Há coisas comuns a várias cozinhas ilhoas, mas não a todas. Por isto, não as incluo na lista do tudo comum. Por exemplo, a mandioca só em Cabo Verde. A caiota (chuchu) só nos Açores. O mogango só nos Açores e na Madeira. O açafrão-açaflor só nos Açores e nas Canárias. A Jamaica, a canela, o cravinho, desconhecidos em Cabo Verde. Muitas outras são o menor múltiplo comum das cozinhas dos arquipélagos.
Há coisas comuns a várias cozinhas ilhoas, mas não a todas. Por isto, não as incluo na lista do tudo comum. Por exemplo, a mandioca só em Cabo Verde. A caiota (chuchu) só nos Açores. O mogango só nos Açores e na Madeira. O açafrão-açaflor só nos Açores e nas Canárias. A Jamaica, a canela, o cravinho, desconhecidos em Cabo Verde. Muitas outras são o menor múltiplo comum das cozinhas dos arquipélagos.
É possível homenagear a Macaronésia com uma receita única, que todos podem fazer com os ingredientes locais de todos os arquipélagos. Podia escolher várias coisas, mas atendendo à importância atlântica da pesca, vou por uma sopa de peixe, facilmente adaptável a sopa de carne ou galinha ou a um estufado ou guisado (ver nota 1). Como disse, nenhum ingrediente nesta receita deixa de ser comum à cozinha tradicional de todos os arquipélagos. Fica aqui o meu desafio: que nenhum restaurante das ilhas deixe de fazer esta sopa, símbolo da Macaronésia (e não cobro direitos de autor!). Nenhum ilhéu deixará de se rever neste menor múltiplo comum das cozinhas macaronésicas.
Sopa macaronésica
800 g de peixe de carne firme, 200 g de atum fresco. 4 c. sopa de óleo (ver nota 2), 1 cebola grande, 3 dentes de alho, 1 pimentão, 2 tomates grandes maduros, 1 folha de louro. Sal marinho, pimenta branca. 3 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 200 g de abóbora, 2 bananas verdes com casca. 1 raminho de salsa, malagueta, cominhos (ver nota 3), farinha de milho.
Separar as cabeças do peixe e cortar o resto em postas estreitas. Cozer as cabeças em água com sal e pimenta. Reservar o caldo e aproveitar a carne do peixe. Refogar a cebola e o alho, com o louro, acrescentar a cebola e deixar apurar um pouco. Cobrir com as postas de peixe e o atum e alourá-las durante 3 minutos de cada lado. Retirar e desmanchar o peixe em pedaços grandes. Juntar ao refogado os legumes cortados em cubos pequenos, os temperos e o caldo. Cozer, 15 minutos. Acrescentar o peixe e ferver mais 10 minutos. Diluir farinha de milho num pouco da sopa e acrescentar, para engrossar um pouco.
Nota 1 - Há bastante tempo, na minha página de receitas e agora incluída na compilação “Livro de Receitas - I”, publiquei uma receita de “Sopa macaronésica de tudo ou cachupa em versão açoriana”. É parente desta de hoje, como coisa impressionista antes deste estudo mais rigoroso de agora.
Nota 2 - Hoje, felizmente para quem cuida da sua nutrição, muita gente lá usa o azeite, mas não é tradicional. Azeite, ido dos reinos, era caro e só para fins especiais, não para gordura de cozinha. Tradicionais eram as gorduras animais, primeiro a banha, mais popular, depois a manteiga para quem tinha mais posses. Para fritos em maior quantidade, refogados, guisados, era o óleo de amendoim, da Guiné.
Nota 3 - Ao fazer este estudo, vejo que uma das maiores diferenças nas cozinhas macaronésicas é o uso das especiarias. Riquíssimo e diversificado nos Açores, por negócio das naus da volta do largo, a pagar com tudo de valioso os frescos que lhes faltavam desde a Índia: pimenta branca, preta e da Jamaica, cravinho, noz moscada, canela. Com mais coisas ancestrais, como o colorau, a erva doce, as muitas ervas. Na Madeira (não esquecendo a segurelha) e nas Canárias, menos. Em Cabo Verde, quase nada, fora sal, pimenta branca, salsa e malagueta. Fica um tempero comum, ancestral, os cominhos, que mesmo em Cabo Verde se usam para uma receita tradicional de lulas guisadas.
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