Uma das coisas muito boas que comi no hotel na Boavista foi uma sopa de peixe. É emblemática e disse-me quem sabe que estava bem feita, como fazia na sua casa de Sal Rei. Registei o que continha - era fácil de ver - e o que percebi como sabores e temperos. A técnica era básica. O resultado era excelente. Simplesmente, ao procurar receitas, encontrei muitas e diferentes, embora com matriz comum. Se googlarem, encontram-nas.
Isto é vulgar na cozinha tradicional. Quanto mais popular é o prato, quanto mais frequentemente feito, mais as famílias lhe introduzem os seus toques distintivos. Como cá, em que cada um tem o "seu" cozido, a "sua" feijoada, ou em que a "sopa de pedra" da morena é a melhor que há, diz ela e eu confirmo, como acho insuperáveis o meu polvo guisado com vinho de cheiro ou as minhas favas de taberna. Assim se enriquece o património gastronómico.
Ora Cabo Verde é muito mais de peixe do que de carne (apesar de as pessoas pensarem logo é na cachupa, que até, para quem não tem posses, é só de legumes), o que dá grande margem a variação da norma. Ainda por cima, sendo ilhas (continua a falar-se em 10, tantas quantas as estrelas da bandeira, embora S. Luzia esteja deserta desde há muito) mais variam as receitas.
Ora Cabo Verde é muito mais de peixe do que de carne (apesar de as pessoas pensarem logo é na cachupa, que até, para quem não tem posses, é só de legumes), o que dá grande margem a variação da norma. Ainda por cima, sendo ilhas (continua a falar-se em 10, tantas quantas as estrelas da bandeira, embora S. Luzia esteja deserta desde há muito) mais variam as receitas.
Nestas situações, o meu método parece-me rigoroso. Vejo o que é comum em todas as receitas e adoto religiosamente. No que variam, vejo se as coisas são coerentes com a base comum, com a história, com a produção local de produtos alimentares (por exemplo, não vou facilmente por curgete ou alho francês numa receita cabo-verdiana, assim como também não iria numa receita açoriana genuinamente tradicional). Finalmente, vendo os casos em que a variação é legítima e depende apenas do gosto pessoal, faço-me local e vou pelo meu gosto pessoal.
Como exceção à regra de só publicar receitas no meu sítio - agora em página renovada depois de a anterior ter dado livro - vai a seguir a minha versão, que julgo que nenhum cabo-verdiano desprezará. Fica antes a questão da escolha de peixes, que merece crónica.
Em regra, para sopas de peixe, misturo, à açoriana, peixe que se desfaz (chicharro/carapau) ou acrescentado á última hora com peixes nobres de carne firme, como garoupa, mero, cherne, corvina, a aparecer no fim na sopa como pequenos pedaços visíveis e bem consistentes. Ontem, no Pingo Doce, estranhei ter de esperar por 10 senhas antes da minha. Só depois vi que era mais uma daquelas promoções de 50%. Como nenhum desses peixes estava em promoção, também não estavam à venda. Acabei por usar cantaril e pargo, e não ficou mal. Simplesmente, a empregada estranhou: “só quer coisas que não estão em promoção?”
Ainda a promoção, antes da receita. Perca do Nilo era o que mais sobrava. Comi uma só vez, fazendo-a em lombo, em fritura assimétrica e detestei. A morena diz-me que, nos tempos de vida só, antes desta alegre casinha, fez uma vez e deu por positiva a relação preço-qualidade. Que o que fiz mal foi valorizar demais o peixe, na confeção. Tem de ser disfarçado, ou num arroz ou num estufado com legumes e sabores fortes, para não saber a lodo. Afinal, como o tamboril, peixe ordinário e barato do meu tempo de estudante de bolsa magra, hoje requintado. Alguém lhe tira bom proveito sem ser no agora icónico arroz? Vale-lhe o fígado, embora insípido e encortiçado, já que os magníficos fígados de salmonete - como é que faço salmonete à setubalense? - ou de rocaz (rascasso) vão para o lixo antes que compre o peixe.
E vamos à “minha” sopa de peixe de Cabo Verde.
6 pessoas. 1 kg de peixe, 4 c. sopa de óleo (todas as receitas hoje referem azeite, mas tal como nas minhas ilhas, a gordura para refogado era óleo ou em casos banha), 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 4 tomates maduros sem pevides ou 200 ml de polpa de tomate, 1 raminho de salsa, ½ mandioca, 2 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 1 banana verde, 300 g de abóbora, 1 pimentão verde pequeno. 2 c. sopa de vinagre. 100 g de cuscus (genuinamente, cuscus de milho). Sal, pimenta branca, louro.
Arranjar o peixe em postas não muito grossas. Separar as cabeças e fazer caldo, simples, só com 2,5 l de água, sal e pimenta branca. Refogar a cebola picada e o alho laminado, com a folha de louro e o pimentão cortado em tiras finas. Misturar com o tomate, dar mais umas voltas e colocar as postas de peixe sobre este refogado, durante 3 minutos, virando e mantendo por igual tempo. Remover e reservar. Juntar todos os legumes (a banana com casca!) em pedaços pequenos, o vinagre, o caldo e cozer durante 20 minutos. Voltar a juntar o peixe, aos pedaços, limpos de pele e espinhas, mais o peixe das cabeças. Acrescentar o cuscus e temperar. Ferver mais 15 minutos. Fica uma sopa muito espessa. Quem a quiser mais leve pode dilui-la em caldo de peixe ou usar só 50 g de cuscus.
NOTA - Fico com dúvidas sobre o picante. A sopa que comi era um pouco picante e mostrava restos de "pimento". Há receitas que indicam piripiri que, ao que por lá apurei, não é tradicional de Cabo Verde. Tradicionalmente, como me disseram cozinheiras do hotel, só se tempera com pimenta branca, mas vejo receitas com “malagueta” ou “pimento”. Quanto a malagueta, creio que em Cabo Verde se usa a malagueta verde, estreita. Chamam também pimento a um pimento cónico com polpa mole, tipo pimento padrão, mas pouco picante. Nesta experiência, reservei um pouco da sopa para temperar ou com a tal malagueta verde, que comprei no supermercado, ou com pimentos padrão escaldados para perderem excesso de picante. Ambas as sopas ficaram saborosas, especialmente aquela que levou as malaguetas verdes, mas não creio que adiante muito à receita simples que descrevi.
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