sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Carne "assada" à família terceirense

Os leitores que tiveram interesse em olhar um pouco mais cuidadosamente para os meus pastéis de massa tenra - de família, e até de família afim - viram que coisa essencial é o recheio ser feito com restos de “carne assada”. Vai entre aspas, porque é forma antiga, pelos vistos, pelo que a casa gasta, não só forma açoriana de designar carne muito bem estalada em tacho e depois estufada em molho, que acaba por apurar bem. Remeti para o meu livro “O Gosto de bem Comer”, sem me lembrar de que o livro está praticamente esgotado, até eu fazer uma edição de e-book, no meu sítio. Assim, aqui vai a ligação para a receita.
Disse que temos ambos a tradição de a carne assada ser de fato/facto (?) estufada, sem ver forno. Mas a semelhança fica por aqui. A da minha família lateral é, nos ingredientes e no tempero, à moda continental, levada para Angola: refogado, tomate, cenoura, temperos tradicionais portugueses. Não é melhor nem pior do que a minha, é diferente. A minha, tradição de família, é marcadamente açoriana. Marinada em vinha de alhos, especiarias “açorianas”. É esta receita, coisa muito invulgar para o hábito de cá, que descrevi na minha página de receitas.
No entanto, anote-se que, como acontece frequentemente com o que chamo a minha tradição culinária açoriana, é uma variante rica, mais refinada, de receitas populares. O caso mais paradigmático, como já tantas vezes escrevi, é o da alcatra, em que aceito a tradição popular, embora seguindo a erudita.
Mas voltemos à carne assada terceirense. A melhor recolha ainda disponível de cozinha terceirense é de Augusto Gomes (“Cozinha Tradicional da Ilha Terceira”, 5ª edição, Tabacaria Angra, 2002). É pena que, muitas vezes, liste receitas um pouco acriticamente, sem as enquadrar gastronomicamente. Pior, muitas vezes limita-se a uma descrição muito genérica, de quem não é cozinheiro e não faz bem ideia do que, ao ler uma receita, um cozinheiro precisa de informação para a fazer bem feita. Por isto, não consigo relacionar bem a minha receita de família com outras receitas listadas nessa recolha. Também por isto, tentei pormenorizar ao máximo a minha receita.

P. S. - Escreveu-me um cozinheiro "ai que delícia" a opinar que esta receita não vale nada, porque é simples e erudita (sic). Dá para entender?

2 comentários:

  1. Bela carne, apesar de tudo não tão diferente assim da minha, que é igual à de tradição angolana que menciona.
    Na receita há, no entanto, um ponto com que não concordo: penso que ninguém (a não ser quem não sabe nada de carnes, que são a maioria)chama pojadouro à chã de fora. Aqui, chama-se pojadouro à peça de cerca de 6 kg que segue por trás, da alcatra ao ganso, e chã de fora à peça de cerca de 3kg que vai, lateralmente, da folha de alcatra (vulgo picanha) até ao chambão. São peças muito diferentes do ponto de vista culinário, sendo o pojadouro a carne mais indicada para "fazer" molhos ricos, pela quantidade de sucos e sangue que tem e a chã de fora muito mais texturada e já percorrida por veios nervosos provenientes do chambão.
    Esta observação para perguntar, afinal, a sua carne assada era pojadouro ou chã de fora?

    Não há qualquer dúvida quanto a "facto": a regra diz que só caem as consoantes que não se ouvem. Portanto facto fica facto para nós, que o dizemos, e fato para os brasileiros (que quando querem dizer o nosso fato dizem "terno")

    Apesar de concordar com a sua apreciação da "tia" Nigella, tenho no entanto de reconhecer o papel que ela desempenhou na última década, como pedagoga, da moda é certo, num país (UK) onde a cozinha tradicional cabe toda numa brochura de 50 páginas e onde o nível médio da cozinha da classe baixa e média é absolutamente indigente, e não estou a falar de gastronomia mas do "amanhar qualquer coisa" mais básico.

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  2. Desculpe, LPontes, mas não reparou bem no que eu escrevi. Não disse que se usava achã-de-fora cá. Referi chã-de-fora como a carne que se usava nos Açores, para este assado, quando eu era miúdo. Correspondia ao pojadouro. Ainda há poucos anos a nomenclatura das carnes era bastante diferente lá, o que está a mudar agora. Por isto, tem razão, por exemplo, em relação ao aspeto. A minha carne assada fica maciça, sem veios nem gorduras, como fica cá com o pojadouro. Tem razão quanto aos sucos e, por isto, começo por a estalar muito bem. Conclusão: cá faço com pojadouro. Mas também já fiz com alcatra, com bom resdultado. Com chã-de-fora de cá é que não faço.

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