Já aqui falei várias vezes de alguma estranheza que tenho sobre velhos hábitos culinários da infância familiar, coisas para mim então naturalíssimas mas que hoje me surpreendem. Essencialmente, um toque afrancesado, de familiaridade com a cozinha erudita clássica. Coisas que nem a sacerdotisa, a minha avó, me poderia explicar, porque ela tinha recebido a tradição mas não tinha informação para a enquadrar criticamente num panorama gastronomicamente mais vasto, muito menos visto à luz do seu futuro e hoje presente dos seus netos.
Por exemplo, não há qualquer registo na culinária açoriana, a não ser em uso ainda atual por primas distantes da minha avó, de um prato tão invulgar como é a galinha de molho de perdiz (“O Gosto de bem Comer”, pág. 281), prato que hoje tem de ser aligeirado, como ainda há dias fiz, mas que continua magnífico. A designação é usada em várias circunstâncias tradicionais açorianas, mas não tem nada a ver com este prato de família. Ainda nas aves, o costume que recordo desde criança de que galinha recheada natalícia, fria, se serve sempre com champanhe, bebida que não é só para a saúde de sobremesa. Hoje é banal, mas de onde vem tão invulgar uso nos anos 20 ou 30 de novecentos, ou até antes, nos Açores? Ou a língua ser sempre feita, requintadíssima, em três fases - cozida, estalada em fatias, guisada - em excelente fricassé? Ou peixe assado com suave mas contrastante molho de nozes e azeitonas, a que me habituei desde criança? É por tudo isto que, quando escrevi o livro, me foi obrigatório dedicá-lo à minha avó Adélia.
Ontem, para jantar simples, lembrei-me de outra coisa excelente. Lá fui buscá-la ao livro manuscrito da minha mãe com os “segredos” de família, livro velhinho a precisar de digitalização e de proteção do original. Era coisa que me perdia, as sardinhas à Nantes. O nome parece evocar logo a tal influência francesa na tradição culinária de família, mas não posso garantir. Certo é que fui procurar a todos os clássicos e não encontrei nenhuma referência.
A receita vai no sítio do costume, adaptada a cavala ou sardas. Embora não goste de designações de receitas que os consumidores não entendam imediatamente, neste caso mantive o “à Nantes”. Cobri, em frio, com uma espécie de escabeche, de funcho, e acompanhei com simples rodelas de batata cozida e tiras de pimentão vermelho semi-assado no forno, a seco.
Mas o notável é outra coisa. Tal como M. Jourdain que não sabia que falava em prosa, a minha avó não sabia que estava a fazer (garanto que vem na sua receita familiar) uma coisa hoje tão modernaça, um confitado. Há 67 anos - os meus - fora os que já vinham sei lá de quando.
(Imagem: "La fête de Babette", um filme a não perder - se o encontrarem, senão peçam-me)
(Imagem: "La fête de Babette", um filme a não perder - se o encontrarem, senão peçam-me)
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