sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Truques e tricas - sopas (II - Caldos/fundos)

Continuando com as sopas, passo para coisa mais difícil, os caldos de base, tecnicamente ditos os fundos. Podem bem ser sopa mas são muito mais, base de molhos, líquido de estufados, para regar assados, muito mais coisas. Dava muita conversa, mas acentuo o papel de um fundo num molho. Em muitos molhos clássicos mas também modernos, o molho parte de um aveludado, que é um "roux" (farinha alourada em manteiga), diluída num fundo, como na banal técnica de um béchamel. 

Até me cai tão bem uma boa chávena de caldo, ao deitar! 

Hoje vou falar deles como sopas, o resto facilmente adaptam. Mesmo como sopa, há níveis diferentes: os caldos na maior exigência, tipicamente os consomês; os caldos acrescentados com mais coisas; as sopas de “substância”. Também, coisa ótima para muitos usos, caldos concentrados de caça ou de carne (mais facilmente se incluindo mão de vaca) dão geleia, depois de arrefecidos.
A importância do caldo é tal que uma das minhas receitas de maior sucesso é simplesmente um “patê” (quer dizer, uma coisa a ir ao forno envolvida em massa) de três carnes, galinha, porco, vaca, mas cada uma previamente cozida em caldo bem diferente e depois cortada em cubos e misturadas as três ("Gosto de Bem Comer", pág. 75). Saberá tudo ao mesmo? Garanto que não.
Ao contrário do que escrevi sopre as sopas de hortaliças ou legumes, defronto-me neste caso com uma maior dificuldade. Então, tudo era relativamente simples, mesmo com boa técnica. Por simples quero dizer duas coisas essenciais na vida de hoje: rápido (o que também quer dizer pouco trabalhoso) e económico
Um bom caldo de base (fundo) é o oposto. Em muitos casos, por exemplo para base de uma sopa “farta”, para um molho do dia-a-dia ou para um estufado ou guisado, é perfeitamente razoável que se recorra a um produto industrial de qualidade (já aqui chamei a atenção para uma nova linha de caldos, em gel, que não têm nada a ver com os cubos tradicionais). C’est la vie! Se vai oferecer um bom jantar “a deslumbrar”, que certamente lhe vai dar trabalho, não é o trabalho extra do caldo que vai pesar muito. Não o fazer pesaria muito mais na qualidade. 
O compromisso é o meu hábito: algum tempo de trabalho - com o meu pequeno consumo, basta-me uma vez por mês - para fazer uma boa quantidade de cada caldo que depois distribuo, concentrado, em doses adequadas e que congelo, em sacos pequenos de fecho hermético, que não ocupam tanto lugar como as caixas. Não perde qualidade, só exige é espaço de congelador. Já agora, um truque. Por vezes, preciso de menos do que cada dose congelada. Como se sabe, nunca se deve descongelar e voltar a congelar o resto. Mas, como faço, há sempre um ponto no micro-ondas que, sem descongelar, já dá para cortar a dose de que se necessita. 

Noutros casos, sei antecipadamente que, durante a semana, vou dar vazão a uma boa dose de caldo. Então, fica no frigorífico, onde se aguenta bem uma semana. Em casa de família, creio que será o mais adequado, pelo menos para o caldo de aves, o que vai bem com tudo, até num risoto de marisco (quem quiser que me peça a receita)!
Há quatro caldos de base, bem diferentes. Melhor, seis, porque os de aves/caça e carne desdobram-se em duas variantes, clara e escura. Os quatro são marisco, peixe, aves, carne. Vou esquecer o de marisco, porque, em geral, para mim, caldo de marisco é simplesmente a água de os cozer, sem qualquer tempero, quando muito reforçada com mais fervura do esmagado de cabeças e cascas.  Se tiver de o temperar, apenas tomate, salsa, açaflor, eventualmente um toque de estragão. 
Os outros só diferem naquilo que usamos como base e no que juntamos ao caldo. Vai a meu gosto e segundo o meu uso (habitualmente, como disse, concentrando bem e guardando no congelador, distribuído, para diluir na altura). Quanto a concentração inicial, coisa básica: num caldo, a água inicial é só a necessária para cobrir os sólidos. Levar à fervura, tapar, passar para lume baixo e cozer durante 20-30 minutos o de peixe, 30-40 minutos o de aves, 50-60 minutos o de carnes. Eu vou pelo tempo menor, para suavizar o caldo (exceto quando, propositadamente, o concentro, como disse).
Peixe (“fumet). Restos de peixes nobres (cabeças, espinhas, bem lavadas para não levarem nenhum sangue) ou peixe inteiro barato (carapaus, fanecas, etc.). Um pouco de azeite, cebola em rodelas (não inteira, porque o tempo de cozedura é curto), alho porro (idem), cogumelos, vinho branco, salsa, sal, pimenta branca. Acho que tudo o que vier a mais prejudica o essencial, o sabor suave do peixe. Abro exceção para um toque de funcho ou de aneto, que vai muito bem com tudo o que é peixe.
Aves. Miúdos de galinha - a meu gosto e para alguns usos acrescentando um fígado extra. Cebola (inteira), alho, alho porro, vinho branco, salsa. Mas a avançar mais do que o “fumet” e a sua salsa, também cenoura, pimenta branca e preta, pimenta da Jamaica, louro, tomilho, casca de limão e, no fim, sumo do dito. Em contrapartida, para meu gosto, os cogumelos são dispensáveis, notam-se pouco. No caso do caldo de aves, começa a entrar a variante claro-escuro. 

Se crescer uma carcaça de ave, podem levá-la ao forno a dourar bem, esmagá-la e juntar ao caldo, a escurecer, mas moderadamente. Há quem, para caldo escuro, também aloure no forno os vegetais, antes de os pôr a cozer. É gosto de cada um, faço no caldo de carne escuro mas no de aves acho que esforça o sabor. Claro que, em qualquer caso, é obrigatório aproveitar para o caldo os sucos da assadura, diluídos com um pouco de água quente. Evidentemente que tudo isto vale para o melhor caldo de aves, o de caça, obrigatório quando nos ficam sempre as carcaças de perdiz, galinhola ou codorniz depois do jantar. Esqueçam que os convidados podem ter levado as ditas à boca, a roer a carne. Fizeram muito bem...
Carne. Mão de vaca, mais alguma carne pobre (aba, cachaço, chambão), eventualmente chispe ou toucinho. Mais avanço nos sabores dos temperos: a mais de tudo o que ficou dito, mais alho, bastante aipo, cravinho espetado na cebola, pimenta preta só, não branca, salsa, tomilho, cerefólio, um toque de estragão (cuidado, tem sabor muito acentuado). Não obrigatoriamente, aguardente e/ou vinho generoso, Outra vez o claro-escuro, e aqui com maior importância. Para escuro, é só arranjar antes a mão e o chispe, levar os ossos ao forno a assar bem, se possível esmagá-los com martelo e só então juntar ao caldo. Juntar também uma fatia de osso buco, também ido ao forno e regressado ao caldo. Por vezes, se lhe vou dar uso posterior (porque frequentemente uso essas coisas depois de fervura, para suavizar), cozo à parte, só em água, um pedaço de presunto ou de chouriço e uso um pouco deste caldo para reforçar, ligeiramente, o sabor do caldo de carne, misturando a gosto. É o que faço também na sopa do cozido, porque não cozo juntamente as carnes e os enchidos.
Em qualquer caso, coisas de técnica básica. Atenção à água, não volto a dizer, e neste caso muito mais crítica! Depois, um caldo coze muita proteína, que coagula. É importante escumar com frequência. No fim, não basta separar os grados. Deve-se coar grosso e a seguir filtrar por pano ou papel. Para muitas utilizações, basta isto. Noutros casos, é desagradável ver-se ou comer-se a gordura, principalmente, para meu gosto, a gordura enjoativa da galinha ou do pato (porque, esqueci-me de dizer antes, também se pode fazer um excelente caldo de pato). Deixa-se no frigorífico umas horas e facilmente se remove com uma colher ou uma espátula (frias) a gordura solidificada, à superfície. Também se faz facilmente passando à superfície do caldo arrefecido papel absorvente.

Mais requintadamente, clarificar, tornar o caldo transparente, como deve ser um consomê. É voltar a cozê-lo, durante meia hora, com 2-3 claras batidas quase em castelo e com as respetivas cascas, esmagadas. Ter cuidado com o que daqui resulta em concentração do caldo, pelo que os temperos, principalmente o sal, só devem ser corrigidos no fim.
Que fazer com um caldo destes, assim requintado? Já não é questão de técnica, é de criatividade culinária. E já lá vai o tempo em que, em qualquer grande restaurante, eram emblemáticos o consomê, a terrina e o suflê, que demonstravam a maestria culinária e a inventividade quanto aos ingredientes.
NOTA - Passei um pouco por alto o caldo de mariscos, mas há uma dica importante. Mesmo que coma mariscos já cozidos, as cascas e cabeças ainda ficam com muito suco. Não vão para o lixo! Escorra bem e congele-as, antes ou depois de bem esmagadas. Se forem restos de um prato temperado (caril, etc.) comece por as lavar bem. Vão dar um bom caldo, quando se lembrar de as ir buscar esquecidas no congelador. Também uma base de "marisco à americana". Em alternativa, uma manteiga de mariscos. Esqueça que os convidados podem ter chupado as cabeças! Porcarias há muitas...

Por exemplo, e à baila. Há dias, num centro comercial com cinema, como é costume a minha mulher e eu fomos à casa de banho antes do filme, não fosse haver urgências depois. À saída, vinha indignada. "Olha, uma empregada de qualquer restaurante, não há dúvida, vinha de uniforme e avental, saiu da sanita e não lavou as mãos". O pior foi que, havendo ainda uns minutos para o seu único vício, lá quis a minha morena um café. Quem havia de lhe servir o café?... Eu ainda tentei ajudar, "repara que ela não tocou na borda da chávena". A sério, isto tem de ser dito às claras, porque protestei sem sucesso. Foi no Fonte Nova de Benfica, com uma empregada do restaurante da cave, junto aos cinemas. 

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