sexta-feira, 20 de julho de 2012

Coisas de infância

Em mudança de casa, tropeço em caixotes, não sei em qual estão os tachos e os utensílios, não consigo aproveitar a minha nova excelente cozinha que parece de chefe (mas já começo a saber usar o tal fogão!). Vou almoçar ao restaurante de bairro, à esquina, bem ou mal. Hoje havia sardinhas. Contra o hábito das sardinhas dos santos populares, agora é que elas começam a estar gordas e boas (à Rubens). Só foi pena que a salada tivesse vindo sem pimentos, obrigatórios.
Enquanto esperava (até parecia que as tinham ido pescar), divaguei  em conversa comigo, a recordar o meu pai, por razões que direi adiante. Ele gostava imenso de sardinhas assadas e incutiu-nos o hábito. Simplesmente, em ilhas de tão bom peixe, não se vendia sardinha! Quase toda a que vinha à rede tinha fim mais importante economicamente, servir de isco na técnica tipicamente açoriana de pesca do atum, à cana, com o bicho a saltar para o barco, sem grande esforço do pescador.
O que comíamos era sardinha salgada, ida do continente em caixas de madeira de que bem me lembro. Demolhava-se e assava-se no forno ou assadeira de álcool. Como já disse repetidamente, grelhador ou churrasco mais à moderna é coisa praticamente desconhecida na cozinha açoriana. Lembro-me da sua introdução, bem como do frango de churrasco "take away", por influência dos americanos das Lajes (João Augusto ou Diana, como se chamava a loja pioneira dos vossos pais, já não me lembro?). 
Mas vem mais ainda em relação ao meu pai e ao seu legado gastronómico. De cozinha sabia pouco - fora fazer um ótimo bife micaelense - mas tinha grande memória dos sabores de infância, o que me permitiu reconstituir receitas familiares perdidas. Experimentava e experimentava até ele me dizer "era assim que a tua avó fazia". Polvo, molho de fígado, por exemplo.

Por ligações profissionais de juventude, na época da guerra, teve grande influência de ingleses, seus dirigentes e colegas nas obras de expansão do porto de Ponta Delgada e outras obras militares navais. Como disse noutro texto, os seus costumes e padrões de homem bom e nobre não nasceram disso, emergiram naturalmente porque já o era antes.
Acima de tudo, o seu impregnado espírito de civismo. Muitas vezes para minha grande irritação, quando, por exemplo, me mandava apanhar do chão papéis e cascas de banana. “Pai, não fui eu que as atirei”. “Mas, João Manuel [o meu tratamento de criança e de que ainda hoje gosto, reservado a carinho de certa pessoa] nunca podes deixar de emendar um erro sempre que puderes; os erros dos outros nunca são a tua desculpa”. Mestre Epicuro também me recomenda isto, para eu não ter insónias. Não há dia em que isto não me esteja presente (e nestes últimos dias com bastante força, certamente percebem porquê)
Então, o meu pai adotivamente “british” tinha algumas manias gastronómicas, principalmente de pequeno almoço. Era refeição pesada e cerimónia familiar, com toda a família sentada à mesa posta, acordados uma hora antes para o único duche dar para todos - eu ainda me lembro de se instalar o primeiro Vulcano; raios, estou velho. A papa de aveia, o “porrige”, era obrigatória. Ovos, bacon, queijo Chedar (produzido localmente, mas grande predileção do meu pai). Bolo lêvedo e queijo de cabra das Furnas, antes da brucelose. A certa altura, uma inovação, quando apareceram, lembro-me bem, os iogurtes, nuns potezinhos de barro em que os vendia o Loreto. Como nos filmes americanos da época, apareciam logo de manhã, à porta, juntamente com o leite, o pão e o jornal que só tinha de importante quem ia de férias ou viajava daqui para acolá, bem como uns sonetos de estimáveis intectuais da terra.

Tudo isto guardado, fora o jornal, num dos primeiros frigoríficos da cidade, uma grande arca arrefecida por grandes blocos de gelo fornecidos, sei lá porquê, pela fábrica da cerveja Melo Abreu.
Mas, delícia das delícias, outra coisa que o meu pai comprava, importada também em caixas de madeira, era o arenque fumado. Nada a ver com a coisa amaricada, em filetes, que por aí se vende hoje. Era o peixe inteiro, carrascão, com ar de podre, seco que nem Juliana Couceiro depois de morta e remorta, com a maldade concentrada pela secura da campa de vala comum. Assava-se em álcool, como os chouriços, acompanhando só com ovo estrelado. Funcionários extremosos da CEE proibiram-no, por excesso de nitratos ou nitritos. Mesmo depois disto, já nos anos 90 adiantados, confortei as memórias com arenque destes comido num hotel londrino. Depois, infelizmente, nunca mais!
Fica deste acontecimento de rebeldia britânica, com reflexos nos tempos presentes da União Europeia, esta coisa que me volta a fazer pensar na “bifofilia” do meu pai. Ninguém manda nos velhos costumes dos súbditos de sua majestade, mesmo que essa majestade ainda venha a ter conotações de Tampax. Ou, como saía naturalmente a um meu velho amigo inglês, “quando eu vou à Europa”... O único problema inglês é o de terem as mulheres mais feias do mundo!

NOTA - Amigos que me conhecem bem mas só agora veem uma foto do meu pai notarão que partilhamos um olhar estranho, não se sabe para onde, para longe. Não é bem para longe, é para dentro, mas muitas vezes o dentro fica muito longe de se ver. E esta foto foi tirada numa das muitas tardes de coisa magnífica de entendimento, o silêncio eloquente.

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