quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Truques e tricas - alho, cebola e refogados

Continuo com truques e notas técnicas; tenho “feedback” de que são coisa que os meus leitores apreciam e creio que principalmente quando lhes são transmitidos por um amador com uma cozinha vulgar, mas experiente, não por chefes profissionais com muitos apetrechos e muita gente a ajudá-los. 
Hoje vou por coisa muito elementar, cebola e alho, a base dos refogados (no Norte, estrugidos) tão essenciais da nossa e de outras cozinhas tradicionais, embora menos usados, pelo menos de forma clássica, nas modernas cozinhas eruditas - e até eu, quando me esmero.
Começo pelo alho, porque também é por ele que começo um refogado, como direi adiante. O alho tem duas peles, a branca mais dura e a rosada mais fina. Isto implica-me dois procedimentos, ambos com o dente de alho já só com a pele rosada e a levarem um pequeno murro. Se for caso de um prato em que o alho se usa inteiro e se retira no fim, o murro é mais fraquinho, para manter a pele presa ao alho e assim vai para o tacho. Na generalidade dos casos, usa-se o alho sem qualquer película e é só, depois do tal murro, cortar o pé do dente e a pele sai facilmente. 
Alho pisado, laminado ou picado? Não há uma regra absoluta mas diria que pisado para um estufado ou similar em que, no fim, se moam os legumes; laminado em pratos ou molhos rápidos em que se quer realçar a vista do alho, como nas cozinhas mediterrânicas; picado, mais ou menos grosso, nos refogados. Em outros pratos ou para pasta de barrar carnes, pisar no almofariz com sal grosso e o que se quiser (azeite - pode ser só no fim, como na açorda -, ervas, azeitonas, massa de pimentão, malagueta, grãos de pimentas, etc.). E ainda o caso de muitas receitas minhas em que frito o alho (eventualmente também com bacon ou chouriço) a temperar a gordura, mas retiro-o depois antes de prosseguir com o prato.
Descontando a menos vulgar cebola branca, que raramente uso, alterno entre a cebola vulgar e a cebola roxa. Não vou dar regras; cada um que experimente a seu gosto. Tal como no alho, não é indiferente a técnica de cortar a cebola. Nos assados ou em pratos de ir lentamente ao lume, para a cebola não se desfazer completamente antes de dar todo o seu sabor, uso-a em rodelas ou até em gomos. Em pratos tradicionais de confeção “pesada” e apurados, cebola picada grosseiramente. Para um refogado, picada fino.
Coisa que me acontece com frequência, como cozinheiro solitário que não prevê bem as compras, grelam as cebolas cá em casa. Ótimo! O bolbo vai para o lixo e uso a rama, picada, como se fosse cebolo, mais difícil de encontrar. Dá um refogado a meu gosto muito melhor do que o tradicional. Outra substituição que faço frequentemente é a de usar chalotas, quase inexistentes há meia dúzia de anos, hoje banalíssimas e para mim indispensáveis para muitos usos derivados da minha vida na Suíça. Mas cuidado: a chalota não substitui apenas a cebola, mas sim, e com grande delicadeza, a mistura de cebola e alho.
Vem a propósito de refogados também o louro. É a única erva que junto logo ao refogado. Há quem o faça também no caso da salsa ou dos coentros mas acho uma barbaridade (com exceção dos talos, picados, que vão muito bem inicialmente num refogado). Sobre louro, só duas dicas técnicas: primeiro, segurando no pé, passe a folha pela chama, durante alguns segundos, de um lado e outro. Depois, retire a nervura central. Também junto nesta fase as pimentas em grão pisadas grosso (não quando as uso moídas, porque então são adicionadas ao líquido da confeção) porque o calor forte lhes queima a casca picante, deixando libertar-se o aroma do miolo. Esquisitices? Verá que fazem diferença e não dão muito trabalho. São estes os meus dois critérios para aconselhar técnicas.
Passemos ao refogado. Desde logo, a escolha do recipiente, obviamente não dependendo do refogado mas do que se vai fazer a seguir. Frigideira, tacho, panela? Cataplana?!... Dá para outra entrada sobre truques de cozinha. Fica prometida.
A seguir a gordura, que dá hoje pano para mangas de discussão, entre gastronomia e dietética. O meu saudoso amigo David Lopes Ramos dizia-me que, no meu livro, só não me perdoava eu falar de gorduras dietéticas. “Um açoriano que pensa sequer numa alternativa à manteiga!”, dizia-me ele.  Sei que ele estava a brincar, sabendo que agora há valores de saúde que se alevantam. Hoje o dogma é o azeite. Dieteticamente, é indiscutível, é o que uso no dia-a-dia, mas não é indiscutível gastronomicamente e creio que há compromissos razoáveis. O meu gosto ou influência de origens, em dia de fugir às regras, vai para outras coisas. 
A cozinha açoriana que me está nas raizes não é de azeite, coisa rica só para tempero. Fritos e base de guisados de peixe, polvo ou leguminosas, ou gordura em grande quantidade para estalar carne, são com óleo. Ovos estrelados, batatas fritas ou, principalmente, bifes feitos em azeite são para mim incomestíveis. No entanto, sendo o meu gosto, sujeito-me à minha regra de que “gostos discutem-se mesmo”.
Bifes são feitos com manteiga. Nem é açorianice, é a mais velha tradição portuguesa. É claro que hoje sabemos o que é a acroleina, há que controlar muito bem a temperatura da manteiga. "Beurre noir" é atentado à saúde e ler agora que Avillez vai inaugurar o seu novo Belcanto mantendo iconicamente os ovos à professor, do meu querido mestre João Cid, é certamente não respeitando o seu segredo de os ovos serem feitos com manteiga a queimar. Sem isto, diga-se de passagem, os ovos são uma banalidade. Quero ver como Avillez vai dar a volta (volta, porque se está a falar de uma omeleta...) [*].

Há também pratos tradicionais, açorianos e outros, principalmente de porco, que usam banha ou o pingo/unto derretidos do toucinho, seu equivalente. Já lá vai o tempo em que as minhas fritadas de morcela e linguiça de S. Miguel eram obrigatoriamente com banha. Hoje, para esses pratos ou para bifes ou salteados/braseados de carne, uso gorduras sintéticas para cozinha, sucedâneas da manteiga. Tendo experimentado muito e não ganhando comissão, permito-me aconselhar uma marca, Becel. Até há pouco tempo, era a margarina dietética para cozinha. Recentemente, muito bom produto, lançaram uma coisa quase pastosa, em frasco, Becel Cozinha rica em Omega 3. Recomendo. Escrevi “para cozinha” e é importante. Ao contrário do que escrevi extemporaneamente no meu livro (como as coisas mudam em meia dúzia de anos!), veio a saber-se depois que usar para cozinha a manteiga magra de barrar o pão é pior emenda do que o soneto.
Num refogado, a ordem dos fatores não é arbitrária. Primeiro, há ordem. Creio que muita gente junta à gordura quente, de uma só vez, a cebola e o alho. É mau, porque a cebola destila mais água, que dilui o sabor do alho. Eu aqueço moderadamente a gordura e junto o alho, controlando muito bem - é questão de segundos - até alourar só um pouco. A seguir é que junto a cebola, o louro e as pimentas pisadas (quando não as junto depois ao molho, moídas), incorporando tudo muito bem e aumentando um pouco o lume.
Num guisado, é comum entre nós começar por fazer o refogado e juntar depois a carne. Faça o contrário. Comece por alourar bem a carne (estalá-la) ou as aves, só em gordura, retire-as e use a mesma gordura para fazer o refogado, voltando a introduzir a carne na altura certa, conforme a receita. Se quiser que o molho fique mais engrossado, seque os pedaços de carne e envolva-os em farinha, antes de alourar. Mesmo depois de remover a carne, parte da farinha já passou para a base e vai engrossar o molho, antes do que vai ser o contributo da carne, quando voltar a juntá-la.

Em alguns casos na moda, esta inversão técnica é obrigatória. Experimente fazer um Stroganov como eu digo, em vez de juntar a carne ao refogado como fazem as “especialistas” da net, e logo verá. Idem para qualquer bom estufado ou “daube”, como o bem conhecido “boeuf bourguignon” ou o excelente mas desconhecido entre nós “émincé” suíço. 

[*] Os "ovos à professor" são uma simples omeleta com presunto, chouriço e pão frito. O que lhes dava diferença, "segredo" do Prof. João Cid, era a manteiga estar muito quente, praticamente queimada. 

3 comentários:

  1. Levo comigo a utilização do grelo das cebolas. É que cá em casa algumas cebolas também grelam e é bom saber que posso aproveitar o verde que se alimentou do bolbo.

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  2. Boa tarde,
    Acabei de ler num blogue (procurava receitas com feijão azuki) que nunca se deve misturar cebola e alho num refogado porque um anula os nutrientes do outro.
    Decidi pesquisar sobre a veracidade da afirmação... Vim aqui parar ao acaso mas vou adicionar a página ao meus favoritos.
    Sabe se está provado cientificamente essa anulação dos nutrientes que compõem estes bolbos?
    Desde já muito obrigada pelo tempo que lhe tomei.
    Cumprimentos
    Margarida Almeida

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