sábado, 28 de abril de 2012

Conhecem Múrcia?


Estive uns dias em Múrcia. Já lá não ia há trinta anos, e como as coisas mudam. Hoje uma cidade desenvolvida e agitada. Antes, nessa tal vez, lugar de uma inesquecível memória minha negativa. Em Agosto, com calor insuportável, passei por Múrcia, em viagem de Córdova (ou Granada? Já não me lembro) para Cartagena. Lá cheguei a Múrcia por volta do almoço, apertado de fome e de outra coisa que adivinham. Aliviar a fome, impossível naquele poço de calor todo a dormir a sesta, nada aberto, nem uma sandes em loja de estação de serviço. Quanto ao outro aperto, não digo como me desenvencilhei. Só tive tempo para um olhar para a fachada da catedral, que confirmei agora ser o mais magnífico exemplo do barroco na península.
Múrcia é uma região autónoma. Dizem-me amigos meus, por piada, que quando se desenharam as autonomias, foram inquestionáveis as nacionais, até com língua própria, Catalunha, Galiza, País Basco. A seguir, outras muito respeitáveis, Castela a velha, Aragão, Estremadura, Andaluzia, os arquipélagos, etc. Toda a gente estava feliz até que repararam que havia no mapa um sítio em vazio, que ninguém queria: Múrcia, que lá ficou com a sua autonomia.
Em alguns dias, consegui conjugar o trabalho com alguma experiência gastronómica, graças à excecional hospitalidade de Joaquín Hernández, da U. Católica de Múrcia. “Insinuando-me” como apreciador junto de chefes de mesa, que num caso até me levou ao de cozinha, fiquei a conhecer alguma coisa da cozinha murciana, que me era alheia.
É uma cozinha rústica e simples, mas saborosa e principalmente com excelente qualidade de produtos hortícolas (por exemplo, o seu pimentão é excecional). É um deserto, quentíssimo e seco, mas com rios e ribeiros que ainda hoje são muito bem explorados com recurso à velha tecnologia hidráulica dos árabes. Claro que também hoje, como se vê por toda a parte, o regadio é completado por muita estufagem. Com tudo isto, eles falam sempre da “horta murciana”.
Não posso dar registo extenso de muita coisa interessante que comi. Por exemplo, uns pastéis magníficos de massa folhada mas tão fina que mais parecia massa filo, e recheados de carne ou de peixe (comi ambos). Uma salada de ovo cozido passado por mandolina e apertado em bolo com tomate e pimentão picados e um pouco de vinagreta, coberto com filetes de anchova. Os tais pimentos recheados com refogado e carne picada, mais uma. Um arroz confecionado ao estilo do levante espanhol, neste caso apenas com carne de porco (de uma raça regional, derivada do porco preto). Peixe grelhado com molho de tinta de polvo ou choco, mais tomate e pimentão pisados.
Nunca tinha ouvido falar da “mojama”. Pareceu-me preparado exatamente igual ao bacalhau, salgado e seco ao sol, mas feito com barriga de atum. Aconselho aos pescadores de atum da minha terra. Servem cru, em fatias muito finas, de sabor muito forte. Excelente, embora, para meu gosto, um pouco enjoativo quando já se vai no terceiro prato! Comi acompanhado com fatias cruas de ovas de atum fumadas, que não conhecia. Também acompanhamento obrigatório, em toda a cozinha murciana, excelentes amêndoas
Deixo para terminar uma coisa “oh simple things!”, como diz o meu amigo Pedro Aniceto, a única coisa que aprendi a fazer por informação do chefe e que reproduzo tão fielmente quanto consegui anotar. É o “zarangollo”, que seleciono porque é só e simplesmente um produto da tal horta murciana.
Não tenho quantidades, adaptem: curgete, cebolo ou cebola com rama, ovos, azeite, sal. Nada mais. Picar o bolbo da cebola e a rama. Cortar a curgete em fatias finas, com ou sem pele, a gosto.  Alourar bem a curgete em azeite quente mas a lume médio, em frigideira, até perder bastante água mas sem tostar. Juntar a cebola e continuar a refogar, a lume baixo, temperando com sal. Cerca de 15-20 minutos depois, juntam-se os ovos, inteiros, não batidos! Disseram-me que era o segredo (afinal, a técnica dos “huevos rotos”). Só quando a clara já está coagulada mas a gema ainda líquida, é que se embrulha tudo, fortemente. Vi fazer, é muito fácil. Comi quente, mas disseram-me que também fica muito bem frio. 

P. S. (30.4.2012) - Almoço de ontem foi de teste, quando ainda vinha com as papilas a mandarem chispas de memória recente: "zarangollo", com uma boa mistura de chouriços murcianos. Não é para me gabar, mas creio que ficou excelente, mas só pela razão que disse. Por mais cuidada que seja a escrita de uma receita, só se consegue reproduzi-la fielmente de duas formas: tendo-a feito ensinado por quem sabe; ou logo a seguir a ainda se ter bem de memória os sabores e os aspeto. 

É coisa de que ainda falarei, a importância da memória gustativa. A mais da recolha de receitas, da inventividade, os grandes chefes sempre disseram que o essencial do seu sucesso era uma volta por outros restaurantes e o regresso com a memória viva, não escrita, dos pratos que provaram. Isto também devia valer paras os críticos. Há algum crítico que escreva sobre Mozart sem ter ido antes a Salzburg e trazer de memória a mais recente e inovadora interpretação?

2 comentários:

  1. Não quero crer que não conhecesses a "Mojama" ou "Muxama" como se designa no Algarve... É caríssima no Algarve mas o preço baixa (olha que novidade) assim que entras pelo litoral espanhol.

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    1. Podes crer... Mesmo quem se gaba de ser gastrónomo conhecedor tem de aceitar sempre as suas limitações. O mundo da cozinha é imenso.

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