Morto por ter cão e morto por não o ter. A pedido de muitos leitores, publiquei aqui algumas notas simples de coisas técnicas que me pareceram fora do conhecimento geral da gente comum. Muitos me agradeceram. Mas também recebi comentários sobranceiros de quem achava que eu estava a escrever banalidades.
Ora, em coisas de técnica, há léguas de caminho, do mais elementar ao mais desafiante. Aos meus detratores da minha simplicidade de dicas, vou subir a parada: sabem trabalhar bem o foie gras? Vou restringir a questão. Um verdadeiro foie gras de ganso, tradicional, trufado ou não, trabalha-se bem, não vou escrever sobre isto. Mas agora vende-se por aí, nos hiper, a metade do preço, um bom foie gras de pato, inteiro ou em bloco. É traiçoeiro para qualquer cozinheiro que se preze. Na primeira vez que o fiz para amigos, foi uma desgraça. Conto a seguir.
Em bloco? Começa aí toda a diferença. Vende-se uma variante em peça, um lobo do fígado, mais consistente e mais trabalhável. Um pouco mais vulgar e mais barato é o foie gras de pato em bloco. Parece-me uma preparação comprimida, provavelmente usando muita gordura de pato para homogeneizar a mistura. E aqui é que está o problema.
A maioria das boas confeções de foie gras usa-o em escalopes de cerca de 1-1,5 cm (para o preparar a quente, quanto mais grosso melhor). Comece-se pelo foie gras inteiro (“foie gras entier”), o próprio fígado, inteiro ou separado nos seus dois lobos. Pode ser cru, semi-cozido ou cozido, o que já implica alguma diferença de tratamento. O foie gras sem outra especificação é em geral uma prensagem de lobos de fígado.
Mais difíceis de trabalhar, para realçar o que, de qualquer forma, têm de muito bom, são as preparações industriais, mais vulgarmente de pato, as tais que hoje se vendem a preço razoável. Não vou referir-me a coisas boas mas menores, como terrinas, pastas, mousses, “parfaits”. O que vale bem a pena são os blocos de foie gras, comprimidos com gordura (comprados frios, vê-se bem a gordura fria e sólida, amarela, a envolver). Este é que é o problema.
O que vejo à venda, de pato, é “micuit”. Há formas excelentes de o comer como tal, frio, com uma guarnição fria imaginativa, ou em sandes ou em salada. Por exemplo: uma tosta embebida em caldo de galinha coberta com fatias de foie gras e estas por sua vez cobertas com uma variedade de coisas: compota de laranja amarga e redução de vinho do Porto; estufado simples de brunesa milimétrica de espargos brancos ou de caiota, com um toque de uma especiaria exótica; mistura de carne de caranguejo com uma base à americana; abacate, papaia ou manga moídos com um vinho generoso e um toque exótico de gengibre e canela; cebola em fatias finas, glaciada; um agridoce de tomate-cereja e ananás; etc. A única recomendação técnica é sobre a remoção da gordura envolvente. Nada mais simples: retirá-la com um pano bem aquecido.
Mais difícil é cozinhar este foie gras bloco em escalopes quentes. Um verdadeiro foie gras trabalha-se muito bem, braseando-o em frigideira ligeiramente untada ou mesmo seca, porque basta a gordura que o foie gras vai destilando. Pode-se brasear só de um lado ou de ambos. Gosto mais da primeira forma, porque dá contraste de textura. Se tentarem tratar assim um bloco de foie gras de pato, muito mais rico em gordura misturada, as fatias estalam, desfazem-se em gordura, desmancham-se. Dizem os especialistas que há uma ótima técnica que, obviamente, nunca experimentei: congelar o bloco em azoto líquido (coisa banal do meu tempo de laboratório) e passá-lo logo para a frigideira seca.
Por mim, só encontrei uma solução, “queimá-las com maçarico”. Sai toda a gordura, mantendo-se a forma e a textura dos escalopes de foie gras. Sobre papel de alumínio, tem uma vantagem: escorre a gordura para o alumínio e deixa-se solidificar no frigorífico, para excelentes usos posteriores, conforme o vosso bom gosto.
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