A última das para mim imperdíveis crónicas de Virgílio Nogueiro Gomes (VNG) trata do seu desgosto, justificado, com o que de tratos de polé anda a sofrer o serviço de mesa nos nossos restaurantes. Ainda há tempos tivemos uma conversa privada sobre isto. Todavia, parece-me necessário esmiuçar um pouco mais este assunto.
VNG elabora a sua crónica, como é tão vulgar fazermos, em torno de uma experiência concreta, mas que sentimos como generalizável. Compreensivelmente, não identifica o restaurante mas ficamos assim na dúvida sobre a sua representatividade.
Pelo que me pareceu, é um restaurante daqueles “famosos no bairro e cercanias”, onde se vai comer à tradicional e sem pretensões, e onde não se espera - desculpe lá, Virgílio - preocupações dietéticas em relação à sopa que desejava. Amesendação popular, toda em papel, a tal ementa na ardósia, empregados de jeans, T-shirt, tatuagens e unhas sujas. É castiço, mas já tenho pouca pachorra para este “comer bem” que fica longe do comer bem na minha casa, e hoje cada vez mais caro. Deixo a crítica para o fim.
Talvez discorde de VNG é no que se refere ao serviço nos restaurantes de primeira classe (é certo que ele não fala nisto). Pelo que vejo, empregam jovens de muito bom nível de escola de hotelaria com chefes de mesa de muito boa qualidade. Para não me alongar, só alguns exemplos. O serviço no infelizmente finado Vin Rouge, sob batuta da proprietária, era de grande qualidade. O chefe do Mensagem, que ombreia em estrelas abaixo do vizinho Feitoria, é um senhor. Os empregados de mesa do Feitoria conhecem toda a confeção dos pratos, para informarem o cliente. No Assinatura, outro dos meus prediletos, mesa de dois, como é sempre a nossa, é servida ao mesmo tempo, um prato a cada um, por dois empregados. E muitos exemplos mais.
Claro que depende das pessoas. Estou a lembrar-me, por exemplo, que na última - e mesmo última! - ida ao Eleven, o empregado era displicente e desagradável - tinha de gerir as três horas de uma refeição para dois - mas, no fim, fomos atendidos por um encarregado dos queijos muito sabedor e simpático, interessado, a perder uns minutos de tempo para saber visivelmente curioso alguns segredos de queijos açorianos.
Classe seguinte é a dos restaurantes entre fast food e não sei quê mais que empregam principalmente jovens brasileiros. Às vezes, esses tropicais são verdadeiramente toscos, mas tão simpáticos e divertidos que até levamos as falhas numa boa. Diferente é quando restaurantes caros e pretensiosos empregam este tipo de pessoal, como um restaurante na moda, em Oeiras praia, em que um jovem principiante me serviu o vinho branco no cálice em que entretanto eu tinha tomado um Madeira de aperitivo.
Depois, há a Charrua defronte da minha casa, para o almoço de sábado, como muitas Charruas por aí fora. Tudo familiar, pai a gerir, mãe no fogão, dois filhos muito simpáticos a servir, futebol na televisão. Toda a gente se conhece, tudo é entre vizinhos e amigos, brincadeiras com a miudagem, pode-se pedir a esquisitice que se quiser que se é sempre atendido com um sorriso. Se falta qualquer coisa que eu deseje, é só um minuto, vão comprar ao minipreço defronte. Ainda por cima, "a cozinha da minha avó". Só um snob pretenderá serviço de mesa de qualidade neste tipo de restaurante. Já muito fazem quando aceitam a minha razão para não querer vinho branco servido em flute, a última moda das Porcalhotas (sem ofensa; é o meu concelho).
O pior, vou com VNG, é o caso do que não é nada disto, deixou de ser a tasca de amigos do bairro, não chega a restaurante de nível mínimo, mas é arrogante. É o tal restaurante que “justifica uma ida de um bairro a outro” (?), mas com a mesma ementa, a mesma cozinha, a mesma degradação de quem vai vendo morrerem as avós que sabiam de colher e tacho. Os restaurantes inefáveis que ainda têm honras de crítica em jornal de referência. Com esses elogios, o seu serviço faz-me lembrar os velhos criados da Brasileira e do Nicola, que se achavam superiores a qualquer cliente e que arrastavam preguiçosamente os pés ao servir a bica, olhando-nos de cima para a falta da gravata.
Nada mudará enquanto houver críticos a porem nos píncaros estes restaurantes, a quem afinal, na crítica, apontam graves defeitos (por exemplo um museu do presunto, em Trás-os-Montes, só com presunto espanhol, com coisas de porco preto em Trás-os-Montes do bísaro, com petiscos mal feitos, mas no fim muito bem classificado na crítica, porque é típico!). Talvez porque não consigam criticar a alta cozinha que vamos tendo, haverá sempre restaurantes de gato por lebre mas elogiados e em que, obviamente, o serviço não é tido em conta como melhoria do restaurante.
NOTA 1 - Fui buscar um excerto do meu próximo livro, que há tempos mandei ao VNG. Aqui fica.
“(…) Obrigatoriamente, nada disto é trabalho para empregado de mesa, por melhor que seja. É para o chefe de mesa, aquele profissional indefinível que nos encanta pelo bom porte, traje distinto (ainda se lembram do jaquetão preto e calça de fantasia, com gravata cinza pérola?), olhar no olhar mas na justa medida de se mostrar ao serviço, sem arrogância, sorriso franco e conversa inteligentemente comedida. E que se retira com toda a técnica teatral da saída de cena, para dar lugar ao escanção, em ajuda à escolha da ementa. O chefe de mesa é tão importante como o chefe de cozinha, com quem tem de fazer boa equipa. Só não exijo que teorize sobre teologia e a virgindade de Maria, como o chefe de mesa buñueliano da Via Láctea.”
NOTA 2 - Voltando aos críticos, às vezes parece-me que alguns parecem apostados numa cruzada de combate entre a sua cozinha tradicional e a cozinha erudita. Não faz sentido, porque elas não se excluem e, para mim, até o que me dá mais gozo é a reconstrução da cozinha tradicional. Depois, parece-me que partem em combate à cozinha moderna e erudita sem a conhecerem bem, sem a saberem fazer, sem experimentarem na sua cozinha doméstica as imensas variações que lhes enriqueceriam a imaginação crítica. Com isto, enchem crónicas com elogios contraditórios a coisas que, pontualmente criticam, mas que valem no conjunto porque é restaurante de ambiente e motivação tradicional. Mas então porque é que não leio uma crítica dessas ao Varunca, ao Pereira, à Kottada, à Alice, ao Vallecula, ao Solar dos Nunes, à Adega da Quarta feira, ao Azinheirinha, etc.?
Muito obrigado pelos seus comentários, e citação.
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