Em fim de semana carente de companhia que obedeceu aos seus “noblesse oblige” profissionais, e que se está a deliciar com cozinha romana in loco, viro-me para coisas por vezes postergadas, como a cozinha banal, de dia-a-dia. Vou falar de coisas muito simples, mas se calhar as que contam mais para os meus leitores, em busca de qualidade simplesmente elegante e muitas vezes apertados entre a exigência e labor da grande cozinha e a trivialidade ofensiva das receitas bloguísticas oh!tiamente “adaptadas” de revistas de cabeleireiro.
Ontem fui ao restaurante de petiscos aqui ao lado e pedi amêijoas. Fazem-nas à Bulhão Pato mas encomendei mal, dizendo que as queria simples, sem as modas de subúrbio que vejo por aí, vinho, mostarda, piripiri. Perceberam errado, julgaram que as queria ao natural. Mas não é que vieram excelentes - porque eram pretas, grandes, muito boas, apenas abertas em água com sal e regadas por mim com o limão que vinha ao lado? Confesso que nunca tinha comido assim, ao natural como se fossem ostras, mas recomendo.
Já agora, e porque protestei contra a desvirtuação mostardiana das Bulhão Pato - lá haverá um contestatário da cultura que me acusa de fundamentalismo, já que ele vive disto, da contra-cultura médica - aqui vai a receita padrão. Não garanto que seja a original, nem sequer que o velho poeta - melhor gastrónomo do que poeta - alguma vez a tenha escrito. Vou por M. Lourdes Modesto, mas na minha versão pessoal que julgo que não as desvirtua.
Deixar as amêijoas (1 kg) em várias águas com sal. Hoje, com amêijoas de viveiro, sem areia, dispensa-se este passo clássico. Aquecer 4 c. sopa de azeite num tacho com tampa e alourar 4 dentes de alho semipisados e cortados em lâminas finas. Juntar as amêijoas, voltear, tapar o tacho e aquecer em lume forte, até abertas, cerca de 10 minutos. Sacudir bem o tacho, segurando a tampa, de 3 em 3 minutos. Se necessário, ferver mais para reduzir a água. Regar com bastante sumo de limão, a gosto, temperar com pimenta branca e bastante coentro picado e agitar bem (agitar como disse, não mexer com colher). Apagar logo o lume e servir 3 minutos depois.
De regresso, passei no supermercado, para compras banais, pensando numa sopa nutritiva para o jantar, a sopa de cavador da Terceira (JVC, “O gosto de bem comer”, pág. 303). Coisa por que me perco são as sopas “brutas” das minhas ilhas, esta terceirense mais a sua magnífica irmã sopa do Espírito Santo, a sopa de couves aferventadas de S. Miguel, as sopas de peixe de todas as ilhas, mas sobre todas a de agraço micaelense (vem tudo no meu livro, mas um dia destes publicarei, porque cada vez mais é difícil encontrar os restos da edição do livro).
Como vinha com o desejo atravessado das amêijoas à Bulhão Pato, lá comprei as bichas e vou aviá-las ainda hoje, seguindo a receita supra.
Entretanto, caíram-me os olhos numas trutas bonitas, claro que de aviário, nem sequer as que, mesmo de viveiro, me servem fresquinhas em Manteigas, nas Furnas ou no Ribeiro Frio. Foi o meu almoço de hoje. Como já não fazia há bastante tempo, perdi-me um pouco na escolha da receita. Entre muitas minhas e de outros, assadas, em papelotes, fritas, com presunto, com cogumelos, com legumes, com amêndoas, até com champanhe, que desperdício!, acabei simplesmente por uma truta “au bleu”, claro que aldrabada, porque esta receita clássica é com o peixe morto no momento, com uma paulada.
Começa-se por um “court bouillon”, um caldo de legumes com azeite, vinagre e vinho branco. Este levou cebola, alho, cenoura, cogumelos, rama de aipo, um talo de alho francês, mais sal, pimenta em grão, Jamaica, louro, salsa, tomilho e rosmaninho. Deu cerca de um litro de caldo. Removidos os legumes (hei-de fazer amanhã uma pasta trabalhada como mirepoix, não sei para quê, mas nada se perde), coei o caldo por papel de cozinha. Voltei a ferver, juntei uma truta bem lavada (o peixe é peganhento) e, quando o caldo começou a fervilhar de novo, apaguei o lume, tapei o tacho e aguardei 6 minutos. Depois, removido, o bicho ficou a aguardar.
Aproveitei só cerca de 4 dl do caldo, que deixei amornar. Com o resto, já direi o que fazer. Bati 2 gemas com um pouco de leite, sumo de limão e noz moscada. Misturei bem com o caldo e deixei ir à fervura, a lume baixo, mexendo sempre. Mais 2 minutos de fervura branda e é o meu molho de “court bouillon” ligado, como descrevo no meu livro. Regou a contento o bicho, batata esmagada grosso e feijão verde.
Não aprovei! Estas trutas que por aí se vendem exigem sabores fortes a disfarçar a má qualidade, não aguentam o desafio de elegância de uma magnífica “truite au bleu”. Recordei as que comia em menino, oferta do Sr. Bermonte, pescador na ribeira dos Tambores.
Com tudo isto, fico com meia dose de amêijoas cruas, mais de meio litro de caldo de legumes e pão saloio que ameaça abolorar. Claro que a decisão é fácil: uma “açorda” (não gosto do termo, vai contra a origem genuinamente alentejana e transposta para os Açores; estou a falar de açorda estremenha ou ribatejana). Será janta de amanhã.
Vou abrir as amêijoas, que guardei no frigorífico, simplesmente em água. Descascá-las e coar a água, que vai servir para ensopar o pão, durante meia hora. O resto do caldo do “court bouillon” vai levar mais um pouco de polpa de tomate. Ou talvez não, logo decidirei. Também um toque de açaflor. Depois, a açorda típica. Refogado de alho em azeite, num tacho cerâmico ou de fundo espesso (isto é importante para qualquer prato de pão!), o pão bem escorrido, as amêijoas, caldo e, um minuto só antes de pronto, coentros picados (coisa minha, gosto de ervas só no fim, a parecerem frescas, não cozidas).
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