sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sentidamente

A gastronomia portuguesa e, muito em particular, o estudo e a defesa da culinária tradicional, sofreram uma grande perda. E ressinto-me de uma ironia da vida, como vou contar. Não éramos propriamente amigos próximos, mas mantínhamos correspondência, com estima. Há ainda poucas semanas, depois de eu ter estranhado a sua ausência de escrita no Público, na coluna de sábado em que tantas vezes transcreveu receitas do meu livro, respondeu-me que ia surpreender com um projeto novo com que estava muito entusiasmado. Propositadamente, não adiantava pormenores, para manter "suspense". Não me passou pela cabeça que o seu manifesto entusiasmo era de alguém com tão curto tempo de vida à frente. Aqui fica a minha homenagem sincera a David Lopes Ramos.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Faisão estufado à antiga, em honra de Escoffier

Perco-me por caça, coisa de menino regalado com ofertas de “tio” caçador viciado, e com tia especialista em ensinar-nos a cozinhar o produto do domingo de tiro ao bicho. Até já comi morta de chumbo, excelente, uma que quase toda a gente só conhece de criação, a galinhola. E anoto que tenho experiência de açoriano, que caça lá é diferente. Há coisas que não conheci até aos meus 16 anos, lebre e perdiz, porque lá na ilha só coelho bravo e codorniz. Depois, em Angola, caça grossa, pacaça, sofro, melhor de todas a palanca (proibida, mas tropa não obedecia), outros variados antílopes, javali africano (não é o nosso!), que delícia de bifes, de assados ou de guisados! Também, em Angola, capota (a galinha pintada do mato), cabrito selvagem para a caldeirada e até macaco, não falando nos filetes de jacaré. Não estou a brincar...
Há uma exceção. Nunca comi faisão de caça genuína. Comi desde miúdo, nos Açores, mas de criação, numa quinta de amigos da minha avó ("Pinhal da Paz"). Mesmo assim, raridade, porque eram só poucas dezenas de bichos. Hoje compro-os cá, congelados, preferindo uns italianos importados. Foi o meu jantar de Páscoa, com um pormenor bastante “démodé”, já verão. Há coisas que me suscitam tanto a imagem de uma ceia no Maxime, depois de ver dançar La Goulue ou Jane Avril, com Valentin le désossé, que me dá para só desenhar academicamente correto, como no velho tempo do nosso “desenho de estátua”, sem um risco de carvão fora dos cânones - coitada da minha primeira namorada, que andou lá por S. Francisco ao Chiado. Toulouse que ficasse no Moulin a rabiscar coisas acompanhadas de absinto.
Nestas alturas, como neste caso do faisão, a minha criação fica estreitada pelas regras do classicismo. Há alturas para ver o elétrico desejo e há alturas para ver Hamlet. Não fica aqui a receita, reservada para quem se quiser dar ao trabalho de a ir procurar onde sabe que as tenho, e quem não sabe que se lixe!. É que não me quero sujeitar a que qualquer tia diga “que coisa pesporrenta, não há pachorra, ó meninas, o gajo baba-se com a técnica”. De fato, não há pachorra para uma hora de compras com sentido crítico, uma hora para fazer geleia de carne como se deve, uma hora para o estufado, ensaios sucessivos - uma colher disto agora outra depois - para o molho sair equilibrado. 
Isto tem a ver com o que disse no último “post”. Caldo Knorr e produtos industriais, porque não, desde que bem trabalhados - o que não é coisa elementar? Mas em dia de festa, em jantar especial para quem tudo merece, umas horas de trabalho valem muito mais do que o dinheiro de comprar excelentes chocolates. Mais uma mesa bem posta, com as pobres pratas da família, bem vestidos mesmo só para olhar um para o outro, velas acesas, Murganheira super-reserva bruto 2004, a quadragésima muito em surdina, charme q. b.
Nota 1 - Claro que o jantar também meteu sopa. Deixo aqui umas dicas, mas só entendíveis por quem foi ler a receita do faisão. A sopa era um creme banal de alho francês com leite (nata está-me proibida) e fécula de batata. A mais, subiu o nível juntar umas boas colheres do puré de legumes estufados e miúdos, e de geleia de carne. “It’s the difference, stupid!”.
Nota 2 - Claro que as mãos de novilho, com parte da geleia, deram o excelente guisado/gratinado que era, até eu escrever, “segredo” da minha família. Tudo se aproveita!
Nota 3 - A minha querida jovem amiga M (que não foi quem jantou comigo!…) disse-me que tinha ouvido num programa do Jamie Oliver uma jovem inglesa dizer que não sabia como acender o seu fogão porque, em casa, só usava o micro-ondas!

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Coisas Knorr

Não tenho publicado ultimamente criações minhas culinárias. Não é que não continue a dedicar a isto algum tempo de fim de semana, mas é que fico na dúvida. Bons cozinheiros não precisam delas, o público da blogosfera das tias não quer coisas tão esmeradas e exigentes. Quem tenta publicar na net coisas deste compromisso difícil acaba a publicar receitas que prefiro comer feitas pela boa cozinheira da minha tasca da esquina. 

A D. Maria não tem ligação à net nem máquina fotográfica para vermos o que é cebola picada. E nunca poderá aldrabar um bacalhau à Conde da Guarda, porque nunca leu Labaredas e Quitério, mas com isto não ouvirá ninguém dizer-lhe que isso é uma boa variante do bacalhau espiritual (LOL!). E sabe de tachos mas não de vinhos, não aconselha à maluca (ou desaconselha com incompetência) o que vai bem com quê. "Ó Nabais, dá cá os lumes".
Disse que sou esquisito nas minhas receitas. Por exemplo, em escritos meus típicos não entram produtos industriais, caldos, molhos, temperos. Mas seria aldrabice dizer que não os tenho em casa, que não os uso na meia hora de preparação simples, mas aceitavelmente boa, de refeição de sozinho (quando tenho companhia, é outra coisa! “Ó João, não pode ser, vou engordar!”). Como é meu uso frequente, o meu jantar de ontem foi uma sopa basta, quase toda com base industrial. Não é vergonha, comi com gosto. Claro que não a serviria aos meus amigos que já consideram o "ninho da águia" como um dos seus restaurantes preferidos.
Minestrone” genovesa! Uma excelente sopa, também com a sua prima pobre “minestra”, de uma cozinha que, ao contrário das exóticas, domino bem, a italiana. E uma cozinha sobre a qual gosto de discorrer em tertúlia, porque é das mais maltratadas, reduzida às pizzas que nem são refeição ou às massas que são só prato intermédio antes da refeição propriamente dita, com excelentes receitas, e com grandes variações regionais, que a maioria das pessoas não conhece (vão ao Gemelli! Há muitos anos, quando eu era jovem, diria que à Gôndola, que saudades).
A minestrone Knorr, pelo que li como composição, preenche o essencial, boa mistura de legumes, com bastante tomate. Mais macarrão, que até nem é obrigatório. Fiz um pouco à parte e achei que era muito aceitável para quem precisa de fazer qualquer coisa em 10 minutos.
Faltavam coisas essenciais, embora não figurando nas descrições mais puristas da minestrone. Bacon, cebola, alho, queijo ralado, até pesto, para maior requinte. Nada mais simples e até brinquei, indo ao limite do industrial. Alourei cubinhos de bacon em 1 só colher de sopa de azeite, para juntar à sopa logo ao princípio daquela fase em que eles dizem sempre “ferver 10 minutos com a panela semi-tapada”. Para dizer a qualquer pessoa que não tinha tido mais trabalho, juntei cebola e alho secos, de frasquinho de temperos. A meu gosto, um pouco mais de manjericão e salsa, também de ervas secas, em frasquinho de tempero. Ainda outro ingrediente muito frequentemente usado na minestrone, uma boa colher de “pesto”. Gosto de o fazer à minha moda, mas claro que, nesta preparação de fast food, usei o que tinha num frasco de origem industrial, nada mau, também de linha branca. Quase no fim, queijo ralado grosso. Não foi parmesão, porque não o tinha, mas marchou muito bem o S. Jorge. Com tudo isto, ficou uma minestrone canónica. Contra a regra, mas a ajudar às calorias, a sopa servida sobre uma tosta.
Falta falar de outra coisa Knorr. Uma boa minestrone (rica, não a popular) é feita com um bom caldo de carne. Esta de pacote soube-me a pouco, mas que fácil é compensar. Julgam que eu, cozinheiro esmerado, não tenho em casa caldos em cubo? Só não os uso nunca é nas receitas de qualidade. Esta levou, mas não um cubo. Aproveito para alertar para a muito maior qualidade dos caldos concentrados que agora se vendem como “Natura”, numas tacinhas. São mais saborosos, não deixam à superfície aquela espuma esquisita a cheirar a sintético e, principalmente, têm muito pouco sal, a coisa inimiga de quem cozinha com os cubos tradicionais. Uma embalagem corresponde sensivelmente a 1 cubo. Para simples caldo, são duas embalagens por litro. Para tempero, entre meia e uma embalagem. Atenção a que cada porção vale 2 g de gordura, dos quais 1 g de saturadas.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Cozinhas exóticas e de fusão

Já escrevi e reescrevi que me sinto muito limitado em relação a cozinhas exóticas por não as saber criticar. Um bom exemplo é a chinesa. Já a comi em dezenas de restaurantes “tlinta-e-tlês”. Já a comi em restaurantes caros em que me dizem que, como no Estoril, lá vai comer com os seus convidados um moderno “mandarim”. E já a comi, horrorosa para meu gosto, em restaurantes verdadeiramente populares de Chinatown, em Nova Iorque. O que é afinal a cozinha chinesa? Ou há mesmo cozinha chinesa, como haverá cozinha portuguesa, coisa misturada de tasca reles, restaurante estimável e família aristocrática?
De cozinha exótica, para muitos, sei da açoriana. Cada vez mais também da angolana, genuína, de alta qualidade. Enquanto não abre o "Tanto mar" ("manda novamente algum cheirinho de alecrim"), isto leva a outra coisa, a cozinha de fusão. Não é nada de fazer alcatra terceirense de javali ou carne de porco à alentejana com lapas, por exemplo. É mistura subtil a que não me atrevo muito porque acho que só se consegue quando se domina muito bem as cozinhas muito diferentes que se quer fundir. 
Por exemplo, cozinha em que sou mesmo leigo é a japonesa. Estou só a descobri-la agora. Nem sequer imaginava boa cozinha japonesa de fusão até um muito bom cozinheiro, meu alter ego gastronómico, nos ter presenteado, grande jantar, com excelente criação de fusão (foie gras em cozinha japonesa!) de Masaharu Morimoto. Receita não levam, porque este meu amigo é muito elitista, os seus esmerados trabalhos culinários de tarde inteira são para os amigos.
Passo a outra coisa relacionada, não propriamente a fusão mas apenas o uso de ingredientes tipicamente exóticos, predominantemente de "sabores da lusofonia": milho, batata doce, inhame açoriano, segurelha madeirense (não só), óleo de palma, farinha de mandioca, sementes de caju, leite de coco; também coisas não lusófonas mas a evocar a expansão, algas orientais, palmitos, feijão de soja, etc. Também o uso de um toque hábil de temperos exóticos característicos. Quase sempre, como vêem nas minhas receitas, coisas açorianas, pimenta da Jamaica, “todolos tâmparos”; mas também garam massala feito por mim; mistura nanquinesa de especiarias; temperos americanos “barbecue”.
Há dias, uma que ainda não tinha usado, mas vinda a caso por ter feito um prato bem tradicional que tenho comido nos Estados Unidos (difundiu-se de Nova Orleães até Nova Iorque), a “jambalaya”. Usa como noutros pratos da cozinha crioula da Louisiana, o “tempero cajun”. Vou usá-lo, muito comedidamente (é forte!), para dar um toque de fusão com pratos “nossos”. Aqui fica uma receita que me foi recomendada como bem representativa.
1 c. chá de pimenta da Caiena, 2 c. chá de pimenta branca moída, 2 c. chá de pimenta preta moída, 1 c. chá de sal fino, 1 c. chá de colorau, 1 c. chá de tomilho seco, 1 c. café de manjericão seco, 1 c. chá de orégãos secos, 2 c. chá de salva. A salva tem truque. É esmagá-la muito bem entre os dedos, a fazer pasta.
Já agora, lembrar que toda a cozinha cajun, da jambalaya ao gumbo (sopa com quiabos - quiabos, Angola, Caraibas, ai a escravatura), vive da “Holy Trinity”, mistura em partes iguais de picado de cebola, aipo e pimentão verde.

A tempo. Cozinha é cultura e não faz nada mal partilhar algum gosto que, não sendo de bem comer, é de bem aprender. Falei acima da escravatura. Já repararam que a maior parte das nossas histórias são só reinoias, que esquecem que Portugal, durante três séculos, XVI-XVIII, foi muito mais importante como império colonial do que como pequeno reino europeu de franja geográfica? Há um excelente livro recente de "História de Portugal e do Império Português", de um australiano, A. R. Disney (ISBN 978-989-8174-92-5), que tem uma coisa notável. São dois volumes de igual dimensão, um dedicado ao Portugal europeu, o outro a Portugal no mundo. Outra coisa interessante é que ambos acabam em 1807, porque depois já não é história, é discussão política e ideológica.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Cozinha angolana (3) - canjica

Aqui deixei nota de um prato africano que tanto é prato por si só de gente pobre como acompanhamento do que calha, peixe frito, enchidos, restos de carne. É o feijão de óleo de palma, coisa excelente, "oh simple things!". Hoje, a acompanhar boas postas de peixe espada preto grelhadas na chapa, no ponto, fiz outra coisa angolana do mesmo tipo, a servir desde prato a acompanhamento, a canjica. Madeira-Angola, cozinha de fusão... Estou a brincar, claro que cozinha de fusão tem mais que se lhe diga, não é só juntar conduto e acompanhamento de origens diferentes.
A canjica tem uma história curiosa, nessa história de ir e voltar entre as duas margens coloniais atlânticas (com exceção dos pobres escravos que só tinham bilhete de ida). A canjiga mudou no Brasil, virou sobremesa. A mesma base de milho, mas pouco mais do que isto em comum. Segundo o imperdível livro do SENAC de Salvador, com recomendação de Jorge Amado, milho, leite de coco, manteiga, açúcar e cravinho, tudo cozido em papa bem mexida e polvilhado com canela, a imitar o arroz doce reinol…
Diz-me mãe Noémia que também se fazia isto no seu Golungo Alto, mas por gente com conhecimentos do Brasil. O que de Angola para lá tinha ido como canjica era outra coisa.
250 gr de milho branco pisado, 500 g de feijão amarelo (na falta, feijão manteiga), 6-7 cl (4-5 c. de sopa) de óleo de palma, sal, gindungo para quem gostar.
Coze-se o feijão depois de demolhado ou utiliza-se feijão em lata. Coze-se também o milho, mas à parte. Depois de cozido mistura-se tudo, escorrido, assim como o óleo de palma e sal. Leva-se um pouco ao lume, com um pouco das águas de cozedura e, depois de apurado, está pronto para servir como acompanhamento. Completa-se com farinha de pau deitada por cima.
Excelente como entrada. Para a refeição, usar como acompanhamento segundo a fantasia, como disse: peixe frito, bacalhau frito, frango de churrasco, restos de carne, croquetes, etc.

A tempo. Apanhei uma receita em que se usa feijoca. A feijoca é muito usada na cozinha brasileira e é essencial na cachupa caboverdiana, mas, ao que me dizem as minhas boas fontes, não tem qualquer tradição em Angola.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Camarões à Nacional

Como escrevi há tempos, sou bastante ignorante das cozinhas moçambicanas - colona e indígena - ao contrário do que se passa com a cozinha angolana. Neste caso, escrevo no singular, porque houve uma grande aculturação gastronómica, não há grande diferença entre a cozinha dos nativos e dos colonos, são mais séculos de colonização e miscigenização, as "gloriosas famílias" de Angola que não há em Moçambique da colonização tardia de funcionários - sem contar com os "prazos" e as companhias magestáticas. Volto aos camarões, em relação a Moçambique e a petiscos dos seus colonos. 
Os camarões ditos à laurentina, do “Coisas boas” (a bíblia das cozinheiras portuguesas em Moçambique - e não era nada má!) são coisa muito generalizada. Até eu os fazia quando estava em Angola, lá chegaram. Hoje faz-se em qualquer cervejaria de Lisboa, camarão frito. Camarão grande (20/30) temperado com alho fatiado, sumo de limão, sal e piripiri (não sei como se chamava em Moçambique; em Angola era gindungo), depois frito em óleo ou azeite.
Relacionando camarões e "Coisas Boas", até deixo nota de uma receita que vale a pena fazer. Nada de requinte ou de grande originalidade, mas que merece experiência de quem quer variar um pouco. Camarão assado, com uma marinada simples, mas com o toque de diferença do açafrão (açafrão amarelo indiano, curcuma) - agradeço ao D o envio da imagem. Cozinha de tias, como eu digo hoje? Não, cozinha de "senhoras de sociedade", com algum bom gosto. Tias hoje são outra coisa... Um dia destes conto uma história ridiculamente deliciosa de uma advogada de Cscááás, que se referia a uma colega em tom depreciativo: "ela julga que é tia? Tia sou eu, não é qualquer uma de S. Domingos de Rana". Gente fina... 

Desperta-me mais curiosidade o camarão à Nacional, nome de uma conhecida cervejaria do Maputo, então Lourenço Marques, hoje sede da IURD. Sendo ícone propagandístico, provavelmente não forneciam a receita. Por isto, fora uma base comum muito geral, o que se lê hoje na net são descrições de quem os comeu e até, os anos vão passando, de filhos já cá nascidos que ouvem as memórias familiares.
Isto da memória é coisa essencial na culinária, mas muitas vezes desvalorizada. No meu caso, tanto no que respeita a receitas reservadas de família como a receitas tradicionais açorianas, consegui reconstituir algumas até perdidas por me gabar de ter sido dotado de uma grande memória gustativa. Claro que também recorro à comparação com outras memórias igualmente boas, nomeadamente a dos meus irmãos. É que nos falha sempre alguma coisa, discutimos desvios de memória, testamos e geralmente chegamos a conclusão consensual. 
Isto diz respeito aos sabores. Mais difícil é identificar, nessa sinfonia, as diversas melodias e arranjos, isto é, os temperos e as técnicas que resultam nesses sabores. Aí, já é preciso algum traquejo e sabedoria, alguma capacidade de reconhecimento de sabores. O ubíquo polvo guisado em vinho, açoriano, numas ilhas leva cravinho, noutras pimenta da Jamaica. É fácil distinguir? Todavia, isto não é exclusivo de cozinheiros experientes. Ainda há tempos, cá em casa, um grande amigo que não sabe estrelar um ovo comeu as minhas favas de taberna micaelenses e disse que aquilo levava castanhas. Errado, mas com explicação fácil para a sua boa observação. Alguém adivinha? De prémio, uma queijada da Vila.

Muito mais difícil, como na experiência que ontem fiz de camarões à Nacional, é quando nunca se comeu o prato e só se pode ir pelas impressões que se colhem de quem bem os conheceu, e não possui mais do que uma receita muito genérica. Aqui vai o que fiz, para duas pessoas. Começo por confessar uma “aldrabice”, porque tinha pouco tempo disponível para a preparação. Em vez de camarão médio-grande, 20/30, que parece que era o mais usado na cervejaria, usei camarão tamanho 10, seis bichos de 100 g cada, para duas pessoas. Mas eram "camarões do canal" (indicus), não camarões-tigre, excelentes mas coisa diferente.
O que direi agora, indo só pela síntese crítica das várias receitas recolhidas, não é o que no fim escrevo como receita definitiva, depois direi porquê. Arranjei os bichos e temperei-os com a pasta que descrevo a seguir mas sem vinho branco e sem azeite. Levei ao forno, regando com um pouco de cerveja - o que verão que não incluo a seguir na receita final. Deixei assar até a casca estar bem vermelha e servi, embrulhados no molho, com batatas “fritas no micro-ondas” - saúde manda - que também já tinham servido para os "camarões dos dias do fim".
Afinal, já bem comidos e apreciados os camarões, um amigo que por lá andou deu-me uma dica preciosa. Milagre, ele tem uma receita genuína, não sei de quem, só sei que da pessoa que, há longos anos, a forneceu, de origem, ao gerente da cervejaria, o Sr. Emílio. Se este a seguiu religiosamente é que não posso garantir. A receita não indica quantidades, coisa vulgar nesse tempo. Elas são escolha minha.
600 g de camarão 20/30, 4 dentes de alho grandes, 1 c. sobremesa de sal grosso, 1,5 c. chá de piripiri fresco picado fino (cá, seco moído), sumo de meio limão, 75 g de manteiga (ver nota abaixo), 2 c. sopa de azeite, 3 c. sopa de vinho branco. Manteiga e limão. 
Cortar os camarões quase completamente pelo dorso, retirar a tripa e espalmá-los. Preparar no almofariz pasta de sal, alho, azeite, piripiri, sumo de limão e vinho e incorporar bem na manteiga. Esfregar bem a carne dos camarões espalmados e deixar a temperar, pelo menos meia hora. Levar ao forno pré-aquecido a 200º, em tabuleiro, cerca de 15 minutos, a avermelhar bem a casca, pincelando-os algumas vezes com o molho. Rejeitar todo o molho. Servir secos, com molho a fresco, tradicional, de manteiga e limão, em partes iguais. Há quem prefira acompanhar com batata frita, mas mais genuíno é o arroz branco.
Nota - Hoje evita-se a manteiga na cozinha. A minha dietista só me permite, diariamente, uma colher de chá de manteiga, a barrar pão ou torrada. Há quem a substitua por manteiga magra. Se para barrar, muitas vezes é ineficaz porque, tendo menos sabor, as pessoas duplicam a dose e dá o mesmo resultado que usar manteiga. Para aquecer, asneira. A manteiga magra sofre um tratamento que impede a sua fervura ou uso culinário. A única substituição admissível é por margarina dietética culinária.

À margem - Saia professorice. Em relação a termos angolanos, de kimbundo (o k já faz parte da nova ortografia), há palavras que passaram para a grafia com “g” (gindungo, a malagueta), outras com “j” (jinguba, o amendoim). Na origem desta diferença na fixação medieval da ortografia portuguesa, está a diferença de pronúncia, [j] simples como “j”, [dj] como “g” antes de “e” e “I”. Será esta a diferença da grafia dessas palavras culinárias angolanas? Alguém que saiba kimbundo pode esclarecer?