quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Lisbon Restaurant Week

Sou cliente habitual da Lisbon Restaurant Week, por uma única razão. Não me importo de, dentro das minhas possibilidades, pagar por um grande restaurante, mas detesto ser vigarizado e pagar gato por lebre. Assim, por 20 €, fico a saber o que me oferecem e extrapolo para a ementa normal – e o seu preço. Nuns casos fiquei cliente, a outro (estrelado) nunca mais lá fui. 

Desta vez foi o Claro, em Paço de Arcos, numa excelente localização com vista para o Tejo (adivinhada, porque fomos jantar já de noite). Já lá tinha ido, como La Cocagne, mas é história antiga. A sala, a vista, a decoração, são as mesmas mas a cozinha, a cargo de Vítor Claro, é muito diferente. No geral, gostei bastante, embora nem tudo me tenha agradado igualmente. Começo por criticar a demora, pouco compreensível no caso de um menu fixo. A compensar, os pedidos de desculpa de um serviço muito simpático.

Abriu-se com um couvert muito simples, mas que não apreciei muito. Bom pão mas apenas de uma qualidade, só mais manteiga e flor de sal. Já tenho escrito que sou minimalista em relação ao couvert, não quero petiscos nem presunto e queijo, mas este exagerou.

Primeira prova de mexilhões, numa espécie de escabeche, com um muito bom toque de um enchido (chouriço, paio?) ou de presunto. Muito simples, muito bem feito. A seguir, barriga fumada em fatias muito finas, com uma boa vinagreta de ervas. Pena que a barriga fosse muito variável, umas fatias com carne, outras só de gordura. De qualquer forma, novamente muito boa nota.

Também muito bons uns coscorões de alheira e depois raviolis de camarão e cogumelos (pareceu-me que chanterelas ou até boletos). Raviolis é uma maneira de dizer, porque a massa era de tipo massa de arroz, oriental. Muito bom.

A entrar nos pratos, uma mousse de bacalhau coberta com batatas fritas. A mousse, muito simples, tipo brandade mas com pouca gordura, mais nata, estava suave e com tempero justo, a ir muito bem com o bacalhau. Fiquei com dúvidas sobre as batatas, fritas em azeite (o que me enjoa sempre um pouco), um pouco agressivas para o bacalhau que, como disse, estava muito suave. Teria preferido um outro legume em palitos, fritos, como, por exemplo, caiotas ou cherovias.

Como não há bela sem senão, o pequeno prato final de carne foi uma desgraça. Porco desenchabido, seco, nem confitado a baixa temperatura nem classicamente assado, a meio caminho, acompanhado apenas com ervilhas que ficaram com uns minutos a menos de tempo de saltear. Gosto de legumes crocantes mas não quase crus. E mais nada a dar qualquer graça ao prato. Em compensação, a terminar, um excelente gelado, claro que não industrial.

Tudo pesado, lá voltaremos para refeição normal. Pena é que, na conversa animada, me tenha esquecido de ver a ementa normal, que também não encontro na net.

domingo, 23 de setembro de 2012

Cozinha com fumo

Falando antes de salitre, nitratos, enchidos, lembrei-me do fumo. Ninguém tem em casa, nas zonas urbanas, condições para montar um fumeiro. Esta nota não tem a ver com isto, mas sim com o uso do fumo para perfumar pratos a fresco. É coisa excelente, mas exige alguns requintes, desde logo equipamento e materiais próprios.

Há fumigadores à venda, mas só em casas especializadas. Para o uso que lhe dou, é-me mais fácil recorrer ao do meu irmão D, meu alter ego culinário, sempre perdido, com bons resultados, por estes requintes, e a quem devo a demonstração do seu uso. Há aparelhos grandes, com fonte de calor e câmara de fumigação, e fumigadores portáteis, como o da imagem, que, tanto quanto consigo imaginar, só servem para a técnica de frasco que descrevo a seguir. Não se trata de fazer fumados, só de temperar com fumo alimentos cozinhados a fresco.

As aparas de madeira, para a queima, vendem-se em casas especializadas ou pela internet. Com isto, a técnica é simples. Os alimentos devem estar cozinhados o mais simplesmente possível, por exemplo cozidos a vapor. São colocados, já a mistura devida, num boião hermético, dos que têm aro de borracha e mola para fechar, e bem fumigados, tapando-se logo o frasco quando o espaço estiver cheio de fumo. Aguardar uns minutos e servir. Et voilà!

Os especialistas esmeram-se na escolha das aparas de madeira, mesmo na sua mistura, como se fossem especiarias a combinar. Há grande escolha nas lojas de gourmet ou online. Considera-se que as melhores são as de árvores de fruto. Também, mais secos e ásperos de aroma, amieiro, carvalho, castanho, faia, nogueira. Por razões óbvias, nunca as resinosas!

Leio também online muita coisa sobre o uso de “líquido de fumo” ou, à brasileira, “fumaça líquida” (por exemplo aqui e páginas seguintes). A técnica é completamente diferente. Usa-se para assados, marinando antes a carne no líquido, que vai com ela a assar, e creio que o resultado é dar ao assado aparência gustativa de grelhado no carvão. Nunca usei e creio que nunca vi esse líquido cá à venda (se alguém conhece, agradeço a informação). 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Salitre

Continuando com velhas técnicas de conservar e temperar, lembrei-me do salitre, componente das salmouras. É coisa descrita nos mais velhos tratados de cozinha e que eu comia bastante em jovem, principalmente a “língua escarlate”, coisa que a minha avó fazia muito bem mas de que nenhum dos netos herdou receita. Mas vai com muito mais, peças diversas de carne de vaca ou porco, mesmo peixe, principalmente do tipo salmão ou truta. Na Europa preparava-se, mas no Chile era um produto mineral de grande importância económica. Tem como componente nitratos. Lembram-se do velho "nitrato do Chile"?

O salitre tradicional é uma mistura de sal marinho e de nitrato de potássio, mais ou menos na proporção 10:1. Os nitratos andam hoje com muito má fama, como potencialmente cancerígenos, mas quem quiser arriscar pode comprar em qualquer drogaria ou roubar 50 g ao armário de reagentes do laboratório. Se for nitrato de sódio, que também se usa, é uma sobrecarga de sódio para a tensão arterial. Eu já fiz há tempos uma salmoura sem nitrato, só com sal (creio que foi um pernil de porco) e ficou muito bom. Não adquire é o tom escarlate. 

A base é 275 g de sal e 25 g de nitrato (ou só 300 g de sal) num litro de água, 30 g (2 c. sopa) de açúcar mascavado e condimentos a gosto. Quem recear que a lavagem final não elimine bem o sal e receie pela sua tensão arterial, pode descer a concentraçao total para 20% (200 g por litro). Há sugestões tradicionais para os condimentos (vejam o Escoffier). Base "obrigatória", pimentas, cravinho, louro, alho.

Para carnes, pimenta preta, zimbro, tomilho, louro, rodelas de aipo e cenoura. Para peixes, pimenta branca, salsa, um pouco de lascas de cogumelos, louro, um cálice de licor de anis, rodelas de cherovia. Claro que eu, micaelense, dou sempre um toque de malagueta, açaflor, temperos de S. Miguel.

Ferver, a dissolver e a tomar sabor dos temperos, deixar arrefecer e rejeitar o depósito de salitre não dissolvido. Limpar bem a peça de carne, bater ligeiramente com o rolo de massa e picar com uma agulha. No caso de peças grandes e rijas, usar uma seringa para injetar a carne no interior com a solução de salitre. Temperar com arte. Guardar uma semana. Lavar bem e cozer ou assar levemente, ou comer mesmo fria, sem mais cozinhado.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Açafrão e açaflor

Já que escrevi sobre a malagueta, não pode ficar esquecida outra coisa essencial da cozinha açoriana, a açaflor, com a corruptela popular de açafroa. Salvo algumas referências que conheço ao seu uso, raro, no Alto Alentejo, é caracteristicamente açoriana. Mais generalizadamente açoriana, em todas as ilhas, do que a malagueta que reina mais é em S. Miguel.

O açafrão de luxo é o que se cultiva em Espanha e é essencial para uma boa paella. É de luxo como se vê pelo preço, por exemplo no Corte Inglês. É oferta muito significativa que me trazem amigos espanhóis em visita à minha casa. A planta é o Crocus sativus, provavelmente originária da Ásia central e hoje cultivada em toda a orla mediterrânica, no “maquis”. Só se aproveitam os estames.

Passando o para o outro extremo, há o açafrão indiano, açafrão amarelo, curcuma, turmérico ou gengibre amarelo. É o moído do rizoma seco de uma planta completamente diferente, Curcuma longa. É da família do gengibre e é um ingrediente essencial do chamado “pó de caril”. Dá muita cor mas em sabor é rústico, grosseiro. Barato, invadiu toda a nossa cozinha de paellas aldrabadas, sopas de peixe, açordas, arroz de marisco. 

A meio caminho, mas para mim muito mais próxima em qualidade do açafrão valenciano, a açaflor açoriana. Como o grande açafrão, é produzido de flores, não de sementes, mas, ao contrário do açafrão "rico", é de toda a flor, pétalas secas incluídas. A flor é de cártamo, ou açafrão bastardo (Carthamus tinctorius). Começou por ser uma planta de tinturaria, impôs-se depois na cozinha açoriana. Depois de secas ao sol e trituradas as flores, resultam uns pequenos fios, avermelhados. Têm sabor forte mas elegante, incomparável com a rusticidade do açafrão indiano.

Vende-se nas lojas açorianas em Lisboa e, com fartura (e a preços cada vez maiores), nos supermercados açorianos. Tem diversos usos nas cozinhas das ilhas. É essencial para todo o tempero de peixes, em sopa ou nos molhos, como o de salsa verde, que vão também com marisco cozido simples. Na Terceira, entra no molho de unha com que se comem as favas, nas tabernas. Também na fava rica micaelense, muito diferente. E, principalmente, nos “todolos tamperos” micaelenses, que entram em quase tudo da cozinha da ilha, açafroa mais colorau, cominhos, erva doce, pimenta preta, cravinho. 

Uma preciosidade, como uma vez escreveu um amigo meu, em memórias de infância de pé descalço. Com a féria, ia-se à mercearia e, feitas as contas, sobravam uns tostões. “O que é que queres de troco?”. “Tamperos!”. Era quase moeda. Ai, as minhas ilhas!

NOTA - Mais uma vez, aqui vem à baila a relação Açores e Alto Alentejo, mesmo alto, zona de Portalegre, Nisa, Castelo de Vide. As relações são manifestas, na onomástica e mais nos nomes de família, nos costumes, na música, na cozinha, na arquitetura de poder, na pronúncia. No entanto, nada nas velhas crónicas insulares, desde logo na principal, as "Saudades da Terra", de Gaspar Frutuoso indica uma origem privilegiadamente alto-tejana do povoamento dos Açores, em particular de S. Miguel. Quando Frutuoso cita a origem dos povoadores mais notáveis, é do Minho ao Algarve. Muito provavelmente, as ilhas foram povoadas por gente aventureira de todos os cantos do país, numa mescla que hoje faz delas um miniálbum de todo o Portugal medieval. A relação com a tal zona da região de Portalegre é mais provavelmente inversa, do seu repovoamento por milhares de micaelenses, em tempos de Pina Manique.

Malagueta

Já muito escrevi sobre a malagueta, em particular sobre a malagueta açoriana (mais marcadamente micaelense). Era hábito pouco vulgar no continente, o tempero com malaguetas (ou, em pó, com pimenta da Caiena), até à grande aculturação dos soldados da guerra colonial e ao regresso dos “retornados”, habituados ao piripiri, que veio para durar. 

Já aqui muitas vezes me manifestei como nada apaixonado pelo simples picante com pouco sabor do piripiri, nada que se compare com a minha malagueta, uma malagueta grande (cerca de 12 cm) e "gorda" que veem na imagem. Ou mesmo a diversidade de malaguetas grandes - não o piripiri - que hoje vemos à venda, africanas, brasileiras, mexicanas, caribenhas. Mas é uma questão de gosto.

Na prática, este tipo de malaguetas grandes só difere no balanço entre sabor e picante (escala de Scoville). Isto controla-se, como digo já a seguir. Habitualmente, preparo a malagueta como já fazia o meu pai, muito simplesmente, na tradição micaelense. Para quem, como nós, privilegia o sabor em relação ao picante, o essencial é remover completamente os septos, a polpa junto ao pedúnculo e as sementes. Depois, curtir em muito sal, mais nada, duas semanas no frigorífico. Lavar, escorrer e moer, ou deixar em peça, em água com muito sal. Lavar bem antes de usar e dar desconto no sal de tempero do cozinhado.

Normalmente, moia-a, mas hoje, por compra local ou na lojas açorianas de Lisboa, aqui e aqui, consigo tanta massa de malagueta que prefiro manter em peça os meus preparados caseiros. É mais difícil de encontrar, mesmo a malagueta crua, no mercado de Ponta Delgada, toda abarbatada pelas indústrias de “massa de pimenta”.

No entanto, há pratos que muitas vezes fazia com massa de malagueta mas que beneficiam da malagueta em peça, picada não muito fino. É o caso do bife e dos chicharros de molho de vilão (no meu livro "Gosto de Bem Comer").

Recebi há dias a oferta de malaguetas frescas. Oferta a um irmão meu, que a partilhou comigo. Veio à conversa com quem lhas enviou, o meu primo HS, que a avó da minha prima, senhora terceirense do círculo da minha avó, também as fazia de outra forma, de curtume. O curtume, nos Açores, está circunscrito quase que só à Terceira, como “picles caseiros”.
Muito simplesmente, pôr sal grosso no fundo de um frasco com tampa, encher com legumes em pedaços, cobrir com vinagre. Tipicamente, não se dispensa como legumes as cebolinhas, a cenoura, o feijão verde e as uvas verdes, para dar “agraço”. Também pimentão mas, nas ilhas de baixo, menos a malagueta, mais característica de S. Miguel. Opcionalmente, em cozinhas mais elaboradas, temperar com pimenta preta e pimenta da Jamaica, louro.
Ora, como a minha avó, extremamente inventiva na cozinha, se adaptou a ir viver e comer em S. Miguel, o mesmo aconteceu, por casamento, à avó da minha prima. Não sabia ou não queria preparar malagueta à micaelense, mas quem não tem cão… Passou a fazê-la como o curtume da sua ilha.

E foi o que fiz, metade por metade, com estas malaguetas que o meu irmão recebeu e que partilhou. Ambas as preparações ficaram excelentes. Experimentem com as malaguetas que aqui compram. Não são a mesma coisa, mas enfim…

E ainda há mais duas coisas que fiz, agora com malaguetas "de cá" (?). Primeiro uma espécie de salmoura agridoce, com vinagre, muito sal, açúcar e ervas e temperos adivinhem o quê. Truque, um rápido "escaldanço", choque de temperatura, arrefecimento em gelo logo a seguir. Também uma excelente compota, criação de um meu irmão que não divulgo.

Apanham-me pelo pé,
Levam-me para o fabrico,
Metem-me depois em moura
— E assim para ali fico —
Mas aquele que me furar
— é a esse mesmo que pico.

(Urbano Mendonça Dias)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cozinha macaronésica - menor múltiplo comum

Macaronésia é, como se sabe, o conjunto dos quatro arquipélagos atlânticos, Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. A ideia vem de uma antiga lenda grega, das ilhas afortunadas, eventualmente os restos da mítica Atlântida (gostava de voltar a ler o álbum de BD da minha infância, do Prof. Mortimer, sobre a Atlândida, aonde ele chega partindo de uma gruta de S. Miguel). De facto, fora isto, pode-se duvidar do fundamento científico de agrupar os quatro arquipélagos, principalmente da inclusão dos Açores.

Têm os quatro em comum a sua origem vulcânica, mas em eras muitos diferentes. Ela é evidente, na orografia, nos Açores e nas Canárias, mas menos nos mais antigos, Madeira e Cabo Verde (exceto no Fogo). Só os Açores se situam na crista dorsal. Os outros arquipélagos emergem da placa africana.

(Já agora, abro parênteses para uma curiosidade. São os Açores terra europeia? Claro que historicamente, etnicamente, politicamente, são Europa e costuma dizer-se que as Flores são o extremo ocidental da Europa. Geologicamente, não é verdade, porque o grupo ocidental dos Açores emergiu no lado ocidental do “rift”, ao contrário das outras sete ilhas. O Corvo é o ponto mais oriental da América).

Também a flora e a fauna têm relações, embora com variantes decorrentes de tão grande dispersão em latitude. Laurissilva, dragoeiro, muitas espécies endémicas, os milhafres ainda hoje comuns que foram vistos erradamente como açores e deram nome às ilhas, são regra geral, mesmo em Cabo Verde hoje semi-desértico, onde registos antigos dizem que havia toda uma grande mancha verde de "mato", plantas baixas (equivalente à laurissilva?), antes do desbastamento e das cabras.

E não têm os macaronésios uma cultura comum? Claro que sim, descontando as rivalidades com raízes históricas antigas entre açorianos e madeirenses e o relativo desconhecimento mútuo entre os ilhéus falantes de português e de espanhol. Claro que sim, na trasbordante simpatia das gentes, naquela coisa indefinível com que a minha mulher sorri ao me dizer "ilhéu tosco".

Por isto, em qualquer encontro (como eu há poucos meses com um grupo de universitários canarinos) vem logo ao de cima a insularidade. E com efeitos práticos. Quem quiser compreender, em termos pragmaticamente políticos, a alarvice de Jardim, em contraponto com uma forma especial, também minha, de elaboração intelectual, anteriana, de João Bosco (meu antípoda político mas intelectualmente próximo, desde a juventude), tem de perceber o que é a insularidade. Eles são as duas faces da mesma moedas, mas uma moeda só de circulação local.

Comum mesmo, para o que aqui conta de nota gastronómica, é o facto de, com exceção das Canárias e dos seus guanches, todos os arquipélagos terem sido povoados de novo, por gentes que trouxeram das metrópoles (Portugal e Espanha não muito diferentes gastronomicamente) os seus usos culinários ou que os misturaram com cozinhas mais pobres, como a dos escravos negros idos para Cabo Verde.

Depois, sendo todas as ilhas porta-aviões ancorados no fundo do mar, o enorme trânsito de produtos alimentares entre América e África. Nos quatro macaronésicos, com exceção da mandioca em Cabo Verde, vinda de África, e sem pensar nas frutas, predomina a importação de produtos americanos, comuns a todos os arquipélagos, com destaque para batata doce, inhame, milho. Também, africanas, as malaguetas, mas curiosamente com muita diferença entre as ilhas.

O atum é elo de união de todos os arquipélagos. Cozinha de atum, para um ilhéu como eu, dá um tratado. Fica para depois.

No meu regresso de férias cabo-verdianas, fiz um estudo comparativo, tão exaustivo quanto possível a um amador, sobre os ingredientes e as cozinhas macaronésias. Encontrei diferenças enriquecedoras, mas ressaltou do quadro uma enorme matriz comum. A partir dela, fiz o exercício que se segue.

Há coisas comuns a várias cozinhas ilhoas, mas não a todas. Por isto, não as incluo na lista do tudo comum. Por exemplo, a mandioca só em Cabo Verde.  A caiota (chuchu) só nos Açores. O mogango só nos Açores e na Madeira. O açafrão-açaflor só nos Açores e nas Canárias. A Jamaica, a canela, o cravinho, desconhecidos em Cabo Verde. Muitas outras são o menor múltiplo comum das cozinhas dos arquipélagos. 

É possível homenagear a Macaronésia com uma receita única, que todos podem fazer com os ingredientes locais de todos os arquipélagos. Podia escolher várias coisas, mas atendendo à importância atlântica da pesca, vou por uma sopa de peixe, facilmente adaptável a sopa de carne ou galinha ou a um estufado ou guisado (ver nota 1). Como disse, nenhum ingrediente nesta receita deixa de ser comum à cozinha tradicional de todos os arquipélagos. Fica aqui o meu desafio: que nenhum restaurante das ilhas deixe de fazer esta sopa, símbolo da Macaronésia (e não cobro direitos de autor!). Nenhum ilhéu deixará de se rever neste menor múltiplo comum das cozinhas macaronésicas.

Sopa macaronésica
800 g de peixe de carne firme, 200 g de atum fresco. 4 c. sopa de óleo (ver nota 2), 1 cebola grande, 3 dentes de alho, 1 pimentão, 2 tomates grandes maduros, 1 folha de louro. Sal marinho, pimenta branca. 3 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 200 g de abóbora, 2 bananas verdes com casca. 1 raminho de salsa, malagueta, cominhos (ver nota 3), farinha de milho.
Separar as cabeças do peixe e cortar o resto em postas estreitas. Cozer as cabeças em água com sal e pimenta. Reservar o caldo e aproveitar a carne do peixe. Refogar a cebola e o alho, com o louro, acrescentar a cebola e deixar apurar um pouco. Cobrir com as postas de peixe e o atum e alourá-las durante 3 minutos de cada lado. Retirar e desmanchar o peixe em pedaços grandes. Juntar ao refogado os legumes cortados em cubos pequenos, os temperos e o caldo. Cozer, 15 minutos. Acrescentar o peixe e ferver mais 10 minutos. Diluir farinha de milho num pouco da sopa e acrescentar, para engrossar um pouco.

Nota 1 - Há bastante tempo, na minha página de receitas e agora incluída na compilação “Livro de Receitas - I”, publiquei uma receita de Sopa macaronésica de tudo ou cachupa em versão açoriana”. É parente desta de hoje, como coisa impressionista antes deste estudo mais rigoroso de agora.

Nota 2 - Hoje, felizmente para quem cuida da sua nutrição, muita gente lá usa o azeite, mas não é tradicional. Azeite, ido dos reinos, era caro e só para fins especiais, não para gordura de cozinha. Tradicionais eram as gorduras animais, primeiro a banha, mais popular, depois a manteiga para quem tinha mais posses. Para fritos em maior quantidade, refogados, guisados, era o óleo de amendoim, da Guiné. 

Nota 3 - Ao fazer este estudo, vejo que uma das maiores diferenças nas cozinhas macaronésicas é o uso das especiarias. Riquíssimo e diversificado nos Açores, por negócio das naus da volta do largo, a pagar com tudo de valioso os frescos que lhes faltavam desde a Índia: pimenta branca, preta e da Jamaica, cravinho, noz moscada, canela. Com mais coisas ancestrais, como o colorau, a erva doce, as muitas ervas. Na Madeira (não esquecendo a segurelha) e nas Canárias, menos. Em Cabo Verde, quase nada, fora sal, pimenta branca, salsa e malagueta. Fica um tempero comum, ancestral, os cominhos, que mesmo em Cabo Verde se usam para uma receita tradicional de lulas guisadas.

domingo, 9 de setembro de 2012

Estão a gozar comigo?

O Yeatman, em Gaia, está na moda. É o melhor que pode haver para deslumbrar o burguês, na sua versão moderna estilo Relvas ou, infelizmente, de alguns velhos conhecidos meus que primeiro passaram pela “chana”, se não pelo Chão Bom que agora visitei, transferidos para os restaurantes e lojas de luxo, ida e vinda em aviões da TAAG com porão a abarrotar. 

Nunca estive no Yeatmen (raio de nome tonto! Também podia ser Ydrinkmen ou Yfuckmen). Nem penso estar. Por 300 euros, peço maior correspondência ao meu hedonismo. E, preço por preço, escolho um hotel de charme. 

Também não conheço o restaurante, agora estrelado. Dizem-me que, “é bom mas, pelo preço, nós costumamos comer melhor em outros estrelados ou até não”. O menu agora oferecido pode vir muito bem feito, a justificar a estrela, mas, pela simples descrição, parece banalidade. Ouço também dizer que a garrafeira é excelente, passe a provocação diletante de se recusarem a ter Barca Velha. Até que um dia um cliente que não vá em brincadeiras lhes diga que, se não têm o vinho que ele quer, não se senta para jantar. Imagino um grande restaurante espanhol que diga que não serve Vega Sicilia! Todavia, como disse, não ponho as mãos no fogo pelo que estou a escrever, por desconhecimento direto de causa, ate por talvez estar a referir casos "anedóticos" (no sentido inglês). Se algum leitor me desmentir fundamentadamente, fico grato.

Mas o que motiva este meu comentário é uma aldrabice inaceitável. Spa é coisa hoje indispensável. Até fez parte das nossas últimas horas de férias cabo-verdianas, a relaxar. Mas veja-se a oferta única do Yeatman, a vinoterapia! Aqui vai a descrição,como se lê na net:
Airoso e espaçoso, o Spa inclui dez salas de tratamento onde é possível relaxar e desfrutar de um programa exclusivo de tratamentos  Vinothérapie® com base em ingredientes extraídos da vinha, que possuem propriedades antioxidantes que contribuem para a beleza, para o bem-estar e para a vitalidade.  A gama completa de produtos Caudalie pode ser adquirida na loja do Spa.
E um banho de Vinho Tinto (65 €), para melhorar a circulação sanguínea e linfática através do uso de óleos essenciais drenantes? A hidro-massagem enriquecida com extractos de vinho tinto, conhecidos pelas suas propriedades anti-oxidantes e calmantes, ajuda a tonificar e revigorar a sua pele, enquanto relaxa e usufrui de vistas de cortar a respiração. [JVC - lá tinham de vir os antioxidantes, apresar do descrédito em que cairam como agentes profiláticos ou terapêuticos - claro que não digo que como nutrientes normais].
(Esta versão portuguesa é relativamente comedida. A inglesa vai muito mais ao ponto de publicidade enganosa).

Tudo isto é aldrabice, da responsabilidade de um exemplo nosso, emblemático, de turismo de “alta qualidade”. Ou os deuses estão loucos ou então os homens estão patetas, com exceção de alguns espertalhaços.

NOTA - Parece que o conceito básico do hotel é que todos os seus responsáveis são “foodies”. Não sabia o que isto é e fui aprender o que é esta nova cultura que tanto apregoam. Boa, coisa excelente! Mas fiquei como M. Jourdain. Também eu sempre escrevi em prosa, mas não lhe chamava ser “foody” (raio de nome!…). Chamava-lhe, muito simplesmente, ser gastrónomo!

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Ainda Cabo Verde

Uma das coisas muito boas que comi no hotel na Boavista foi uma sopa de peixe. É emblemática  e disse-me quem sabe que estava bem feita, como fazia na sua casa de Sal Rei. Registei o que continha - era fácil de ver - e o que percebi como sabores e temperos. A técnica era básica. O resultado era excelente. Simplesmente, ao procurar receitas, encontrei muitas e diferentes, embora com matriz comum. Se googlarem, encontram-nas.

Isto é vulgar na cozinha tradicional. Quanto mais popular é o prato, quanto mais frequentemente feito, mais as famílias lhe introduzem os seus toques distintivos. Como cá, em que cada um tem o "seu" cozido, a "sua" feijoada, ou em que a "sopa de pedra" da morena é a melhor que há, diz ela e eu confirmo, como acho insuperáveis o meu polvo guisado com vinho de cheiro ou as minhas favas de taberna. Assim se enriquece o património gastronómico. 

Ora Cabo Verde é muito mais de peixe do que de carne (apesar de as pessoas pensarem logo é na cachupa, que até, para quem não tem posses, é só de legumes), o que dá grande margem a variação da norma. Ainda por cima, sendo ilhas (continua a falar-se em 10, tantas quantas as estrelas da bandeira, embora S. Luzia esteja deserta desde há muito) mais variam as receitas.

Nestas situações, o meu método parece-me rigoroso. Vejo o que é comum em todas as receitas e adoto religiosamente. No que variam, vejo se as coisas são coerentes com a base comum, com a história, com a produção local de produtos alimentares (por exemplo, não vou facilmente por curgete ou alho francês numa receita cabo-verdiana, assim como também não iria numa receita açoriana genuinamente tradicional). Finalmente, vendo os casos em que a variação é legítima e depende apenas do gosto pessoal, faço-me local e vou pelo meu gosto pessoal.

Como exceção à regra de só publicar receitas no meu sítio - agora em página renovada depois de a anterior ter dado livro - vai a seguir a minha versão, que julgo que nenhum cabo-verdiano desprezará. Fica antes a questão da escolha de peixes, que merece crónica.

Em regra, para sopas de peixe, misturo, à açoriana, peixe que se desfaz (chicharro/carapau) ou acrescentado á última hora com peixes nobres de carne firme, como garoupa, mero, cherne, corvina, a aparecer no fim na sopa como pequenos pedaços visíveis e bem consistentes. Ontem, no Pingo Doce, estranhei ter de esperar por 10 senhas antes da minha. Só depois vi que era mais uma daquelas promoções de 50%. Como nenhum desses peixes estava em promoção, também não estavam à venda. Acabei por usar cantaril e pargo, e não ficou mal. Simplesmente, a empregada estranhou: “só quer coisas que não estão em promoção?”

Ainda a promoção, antes da receita. Perca do Nilo era o que mais sobrava. Comi uma só vez, fazendo-a em lombo, em fritura assimétrica e detestei. A morena diz-me que, nos tempos de vida só, antes desta alegre casinha, fez uma vez e deu por positiva a relação preço-qualidade. Que o que fiz mal foi valorizar demais o peixe, na confeção. Tem de ser disfarçado, ou num arroz ou num estufado com legumes e sabores fortes, para não saber a lodo. Afinal, como o tamboril, peixe ordinário e barato do meu tempo de estudante de bolsa magra, hoje requintado. Alguém lhe tira bom proveito sem ser no agora icónico arroz? Vale-lhe o fígado, embora insípido e encortiçado, já que os magníficos fígados de salmonete - como é que faço salmonete à setubalense? - ou de rocaz (rascasso) vão para o lixo antes que compre o peixe.

E vamos à “minha” sopa de peixe de Cabo Verde.
6 pessoas. 1 kg de peixe, 4 c. sopa de óleo (todas as receitas hoje referem azeite, mas tal como nas minhas ilhas, a gordura para refogado era óleo ou em casos banha), 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 4 tomates maduros sem pevides ou 200 ml de polpa de tomate, 1 raminho de salsa, ½ mandioca, 2 batatas, 1 batata doce grande, 1 inhame, 1 banana verde, 300 g de abóbora, 1 pimentão verde pequeno. 2 c. sopa de vinagre. 100 g de cuscus (genuinamente, cuscus de milho). Sal, pimenta branca, louro. 
Arranjar o peixe em postas não muito grossas. Separar as cabeças e fazer caldo, simples, só com 2,5 l de água, sal e pimenta branca. Refogar a cebola picada e o alho laminado, com a folha de louro e o pimentão cortado em tiras finas. Misturar com o tomate, dar mais umas voltas e colocar as postas de peixe sobre este refogado, durante 3 minutos, virando e mantendo por igual tempo. Remover e reservar. Juntar todos os legumes (a banana com casca!) em pedaços pequenos, o vinagre, o caldo e cozer durante 20 minutos. Voltar a juntar o peixe, aos pedaços, limpos de pele e espinhas, mais o peixe das cabeças. Acrescentar o cuscus e temperar. Ferver mais 15 minutos. Fica uma sopa muito espessa. Quem a quiser mais leve pode dilui-la em caldo de peixe ou usar só 50 g de cuscus.
NOTA - Fico com dúvidas sobre o picante. A sopa que comi era um pouco picante e mostrava restos de "pimento". Há receitas que indicam piripiri que, ao que por lá apurei, não é tradicional de Cabo Verde. Tradicionalmente, como me disseram cozinheiras do hotel, só se tempera com pimenta branca, mas vejo receitas com “malagueta” ou “pimento”. Quanto a malagueta, creio que em Cabo Verde se usa a malagueta verde, estreita. Chamam também pimento a um pimento cónico com polpa mole, tipo pimento padrão, mas pouco picante. Nesta experiência, reservei um pouco da sopa para temperar ou com a tal malagueta verde, que comprei no supermercado, ou com pimentos padrão escaldados para perderem excesso de picante. Ambas as sopas ficaram saborosas, especialmente aquela que levou as malaguetas verdes, mas não creio que adiante muito à receita simples que descrevi.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Mais sobre cozinha de Cabo Verde

Com as lides de regresso de viagem, ainda não tinha tido tempo de ir à net. Encontrei agora a referência a dois livros de receitas cabo-verdianas e a um sítio com uma extensa coleção de receitas.

Um dos livros é o “Cozinha tradicional de Cabo Verde”, de Maria Teresa Lyon de Castro, publicado pela Europa-América (tinha de ser...). Não tem indicação de ano ou de ISBN. Noto que a autora tem outros livros, de cozinha tailandesa e de cozinha russa. Tal enciclopedismo não me palpita bem.

Muito recomendado por diversos blogues das ilhas, da autoria de Maria de Lourdes Chantre, é o “Cozinha de Cabo Verde” (Editorial Presença, 1993, ISBN 9789722310468) que já confirmei que figura no catálogo da FNAC). 

Também um livro bilingue, no catálogo da Amazon: “Cozinha de Cabo Verde: A Cape Verdean - American Cookbook”, de Thomas D. Lopes.

Receitas avulsas há em vários blogues. A coleção mais extensa, de que não posso garantir a genuinidade, vem no Kumida di Téra. Vejo que algumas são praticamente iguais ao que me ensinou a minha “mestra” cozinheira anónima, na Boavista.

P. S. (4.9.2012) - E mais um sítio que só agora descobri, "CVNAPONTU".

domingo, 2 de setembro de 2012

Em Cabo Verde, o que comemos

Não posso dizer que tenhamos ficado com vasta experiência da cozinha tradicional de Cabo Verde, tal como a que já conhecíamos ou a que tínhamos investigado antes de lá ir. A primeira experiência, na Praia, ficou-se por pouco. Ao almoço, no hotel, comemos uma excelente posta de atum assado no forno, julgo que previamente marinado em sumo de limão, coberto com uma brunesa de legumes regada com leite de coco, tudo acompanhado com um bolo de arroz branco como raramente tenho visto tão bem feito. Mas lá nos disseram, honestamente, que aquilo era de "inspiração cabo-verdiana" mas não genuinamente tradicional.

Já ao jantar, porque a lista não oferecia nada de especial, fomos a um simples prego, muito bem feito - boa carne batida como se deve para prego, bem temperada com alho e pimenta preta - num excelente bar-esplanada do hotel, sobre a Prainha, refastelados à romana em divãs de aconchego de namoro. Isto porque no Plateau não conseguimos encontrar nenhum restaurante de cozinha cabo-verdiana. O Plateau alberga hoje, em todas as ruas, dezenas lojas de chineses intervaladas de quando em quando por restaurantes, mas uns bares de pizzas e hambúrgueres.

No Mindelo, por desventuras causadas pelos TACV, ou tínhamos tempo para ver a magnífica cidade de herança colonial, arquitetura rigorosamente preservada - muito mais do que na Praia - ou tempo para procurar um restaurante. 

Acabamos por ter uma experiência encantadora, um jantar de marisco na varanda (1 metro de largura!) do Chave de Ouro. É uma pensão à velha maneira portuguesa, decoração de antigas pensões lisboetas de africanistas em graciosa, um criado muito simpático, mas velhote a arrastar os pés. Para beber, pedi uma cerveja local, Strela, mas ele veio perguntar, mostrando uma Superbock, “não prefere esta?”. Simpatia caboverdiana é inexcedível.

O hotel da Boavista (Iberostar Club Boavista), onde fomos descansar depois do encontro com Cabo Verde real, com aquele que me ficou nha cretcheu (por eu ser ilhéu?), tinha boa oferta de restauração. Nos bares da piscina e da praia, boa variedade de componentes de saladas para combinar a gosto, com vários molhos bem feitos, minipizas, panquecas e seus melaços e xaropes, pequenos fritos de legumes cabo-verdianos, fruta, docinhos. Bebidas e cocktails, com e sem álcool, e sumos à discrição. As refeições principais eram num grande restaurante, em bufete. Mas antes, falarei do Gourmet, o melhor restaurante do hotel.

Espaço limitado, a exigir marcação, bem decorado, muito boa amesendação, bom serviço por empregadas ilhoas que não ficam a dever aos seus colegas lisboetas estrelados. Só dois menus, de cozinha elaborada, muito bons. Só dois, mais o suplemento extra de lagosta, mas dá para uma semana de férias. Todavia, sempre quase vazio! Por não se poder ir de calções e chanatas?… E era o único em que, por encomenda, se podia comer lagosta, um bicho mais do que suficiente para duas pessoas, por 23 euros! (os menus normais estavam incluídos no preço da diária). Único senão para mim, a lagosta vinha grelhada e um pouco seca. Pode ser esquisitice minha, mas marisco é por obrigação simplesmente cozido, de preferência em água do mar, como se fazia (faz-se ainda?) nas marisqueiras da minha ilha.

A acompanhar, vinho cabo-verdiano, “Chã”, coisa cuja existência desconhecia. Vinho da ilha do Fogo, de terras vulcânicas, como nas minhas ilhas. Com a lagosta, bebi o branco, muito agradável, elegante, meio-encorpado, de acidez e secura médias, um ligeiro toque doce e amariscado como o irmão ilhéu  verdelho dos Biscoitos. Mas casta diferente, a explicar isto: na versão crioula, “moacatel”. Não provei o tinto, também monovarietal, com a designação muito simples de “casta Tradicional”.

No fim, um grogue velho. Para mim, não há aguardente de cana (Brasil, Jamaica, Cuba, Madeira, etc.) que se compare ao grogue velho cabo-verdiano. Já não vou tanto é no “pontxe”, coisa adocicada com base em grogue, em que fervem melaço, grãos de café e limão. Curiosidade que talvez muito desconheçam: a macieza e o tom dourado do grogue velho não vêm de envelhecimento em madeira, mas sim em potes de barro. Lembrei-me do que vi em Tennessee, com os uisques caseiros de tipo Jack Daniel's.

O hotel anunciava que o seu bufete tinha sempre cozinha cabo-verdiana. Não é verdade, como me palpitou e depois confirmei junto de quem sabia. De cabo-verdiano foi cachupa uma vez (a ir só provar à pressa, depois do jantar de lagosta, e a não aprovar em relação à versão da Mena que faço ou à da Casa da Morna), uma vez canja, outra sopa de peixe, ainda lulas guisadas, outra vez cocada, como sobremesa. 

Tudo o resto era uma coleção de estufados diversos - vitela, porco, frango, coelho, até codornizes - repetitivos, a evocar o estilo cabo-verdiano (?) mas sempre a saber ao mesmo: refogado em óleo, bastante tomate, pimenta branca e malagueta (mas o picante não é tipicamente cabo-verdiano - ver nota, no fim), batata doce e mandioca a evocar África (mas normalmente com falta da abóbora), mas mais cenouras, curgetes e ervilhas que não vêm ao caso, assim como pimentos diversos. Em geral, faltava o milho, o ingrediente mais característico da cozinha de Cabo Verde, a planta que se vê semeada em tudo o que é canto arável de terra, mesmo que uma nesga à beira da estrada.

No entanto, não critico esta opção por uma oferta de cozinha “à moda de Cabo Verde", desde que seja claramente identificada como tal. Até é um projeto que estou a finalizar para ementas turísticas da hotelaria micaelense. O que me suscita dúvidas é que, ao que apurei, toda essa cozinha foi concebida desleixadamente por um chefe espanhol (nacionalidade da empresa do hotel), lista de uma única receita de base com muda isto ou aquilo. Ao ver um prato, eu no fim já sabia a que me saberia.

Para além do que comi, e de coisas que já conheço e que me faltaram, como o moje, o peixe assado ou o xerém, ouvi gabar pelo pessoal de mesa a variedade de doces da cozinha cabo-verdiana - gufongo, variados fritos de batata doce, banana ou abóbora, cuscus com mel de cana, etc., que não encontrei no hotel. Era tudo gente gulosa, de sorriso escancarado (ai, sorriso ilhéu, também da minha gente) a falar nos seus doces!... e eu com muita conversa a atrapalhar-lhes o trabalho - mas no fim já vinham meter conversa de comidas e de como era em "tu téra". Comigo a tentar desembrulhar-me em crioulo, coisa divertida. Senhores, há turismo e turismo!

Fiquei a conhecer algumas receitas. Das receitas que aqui deixo como exemplo, uma, a emblemática cachupa, já publiquei, oferta de excelente cozinheira, para além de outras qualidades, a Mena Pepetela. A sopa de atum e a cocada, a comporem refeição, aprendi-as agora e fiz hoje enquanto estava próxima a memória dos sabores. Ajustei por mim as quantidades (fazendo equivalência com a “chávena e copo” que me deram como receita) e a técnica. Creio que, não sendo especialista, não me saiu mal. Ontem já tinha feito, agora aprendida, uma canja de galinha, com idêntico apreço.

Canja de galinha
½ galinha, 120 g de arroz*, 1 c. de sopa de óleo, 2 dentes de alho, 1-2 tomates maduros, ½ mandioca, uma batata doce, 1 inhame, 1 folha de louro, hortelã, sal a gosto, pimenta, malagueta se se quiser.
Cortar a galinha em pedaços pequenos, esfregar com sal e pimenta e com o alho pisado em sal, mais o louro. Deixar temperar algum tempo. Picar grado a cebola e refogar. Juntar a galinha e seu tempero. Quando alourada, juntar o tomate picado e voltear. Adicionar água q. b. e, ao ferver, o arroz. A seguir os legumes, em brunesa. Deixar apurar. No fim, pimenta e hortelã.
* Disse-me uma jovem animadora que na sua casa faziam com massa. Variação de arroz e massa, como em Portugal?
Sopa de atum
500 g de atum fresco*, 2 c. sopa de óleo, 2 cebolas, 3 dentes de alho, 2 tomates, 1 c. Sopa de massa de pimentão (opcional), pimenta, sal (e malagueta), farinha de milho (rolon) q. b. para fazer a sopa um pouco cremosa, água, coentros.
Colocar o atum a refogar, com azeite, cebola, tomate, alho, pimentão, pimenta, sal e malagueta, mexendo a desfazer o atum. Adicionar a água. Quando ferver, juntar cerca de meia chávena de farinha de milho, e deixe ferver até ficar apurado. No fim, juntar um molho de coentros picados. 
* Na falta, creio que não sairá mal a sopa com atum de conserva. Também me disseram que, em vez da farinha de milho se pode usar cuscus de milho.
Cachupa rica
500 g de milho branco pisado grosso, 250 g de feijoca, 250 g de feijão vermelho, 250 g de entrecosto, 250 g de carne de porco, 150 g de cachaço de vaca, 1/2 chouriço, 1/2 morcela, 100 g de toucinho, ½ frango, 1 repolho pequeno, 2 batatas doces, 1 mandioca, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, sal, pimenta, louro, eventualmente piripiri.
Cozer separadamente, sem sal, milho branco pelado, feijoca e feijão de pedra (vermelho). Cozer as carnes e os enchidos. No caldo da carne, sem as carnes, cozer, em bocados grandes, repolho, batata doce e mandioca, bem como a cebola e o alho picados. Misturar  as carnes, o milho, o feijão e os legumes cortados em pedaços pequenos. Temperar com sal, pimenta e louro, molhar com os caldos e deixar apurar.
Cocada
10 ovos, 250 g de açúcar, 300 g de coco ralado, casca ralada de 1 limão, 125 g de manteiga derretida, sumo de ½ limão.
 Bater muito bem o açúcar com a manteiga derretida, os ovos (sem separar gema e clara), a casca ralada do limão e o sumo do meio limão. Adicionar o coco envolvendo bem sem bater. Verter a mistura numa forma bem untada com manteiga e levar a cozer em banho-maria cerca de 50 minutos em forno médio (180º). Depois de cozido deixar arrefecer um pouco e desenformar. Servir frio, cortado em cubos. 
NOTA - Tempero é coisa importante na cozinha cabo-verdiana, mas pela quase ausência. O sabor é só dos ingredientes. Como repetidamente me disseram, "tempero não é preciso, vem das coisas. Só pimenta, mas só desta" - e apontavam para a pimenta branca que estava na mesa. No entanto, diziam que havia quem gostasse de picante. De picante, ao que apurei, umas malaguetas do tipo das malaguetas compridas e estreitas que se vendem cá (diferentes da malagueta larga achatada dos Açores), mas um pouco mais pequenas e verdes. Também o muito bom "pimento", verde, cónico, com cerca de 10 cm de comprimento, de polpa pouco espessa e mole, muito saboroso e quase nada picante.