quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Carnes (III) - para a alcatra terceirense

Continuemos com as carnes e com memórias de açoriano. É curioso que não haja uma norma para o mais emblemático prato de carne açoriano - quase que diria português -, a alcatra. Muitos açorianos que conheço pedem no talho “carne de assar”. Outros trocam a nomenclatura continental e a açoriana. Mesmo o mais esforçado recoletor de receitas tradicionais açorianas, Augusto Gomes, indica apenas e simplesmente, nas suas duas dezenas de receitas, “carne para alcatra”.
Afinal, isto é capaz de ser bem compreensível. A alcatra terceirense, com tudo o que de ancestral, mítico, religioso, lhe está ligado, coisas do Divine Sinhor Esprite Sante, não conhece classes, no seu âmbito de culto e festa, mas não as pode ignorar, na prática económica. Todo o terceirense a faz, mas obviamente que de acordo com as suas posses. 
Há uma alcatra pobre, a que se serve fraternalmente no império das freguesias menos abonadas, a que se cozinhava também em dias especiais de casamento ou batizado ou a fechar, em família e amigos, a festa estival da tourada à corda. A carne era e ainda é principalmente chambão, com a vantagem de já levar por natureza o indispensável osso com tutano. O vinho era e é de cheiro (morangueiro, como se diz no continente, de uva Isabel, americana), a gordura era e ainda é em boa parte a banha. É interessante comer esta alcatra como experiência etnológica mas não é recomendável gastronomicamente. Lamentavelmente, é esta a que, etiquetada de “verdadeira”, se faz em alguns restaurantes muito recomendados turisticamente.
A alcatra de classe média ou que depois se vulgarizou nos restaurantes usa carnes melhores, embora não de topo. Por exemplo, carnes de acém, redondo e comprido. Como não têm a mesma textura um pouco gelatinosa caraterística da alcatra e o desfazer da carne em fios, junta-se-lhe cachaço. E também um osso. A gordura já é só manteiga ou mistura de manteiga e banha. O vinho tanto pode ser de cheiro como maduro branco. Com estas variações, não admira que qualquer local aconselhe que a “melhor” alcatra é a do restaurante X ou Y. Da mesma forma, a melhor é a do império A ou B, conforme a habilidade da cozinheira-mor.
Nas velhas famílias, mantiveram-se padrões mais exigentes. A carne é obrigatoriamente rabadilha. Não se enganem! Rabadilha diz-se nos Açores; cá é a folha de alcatra! Mais o osso, claro e, como se fazia na minha casa, um pouco de cachaço ou de aba grossa para gelatinar o molho, mas que não se serve. Gordura, exclusivamente manteiga. Vinho, só branco, mais especificamente, quando se podia nos meus tempos de miúdo, em que se recebia especialmente para a alcatra, Chico Maria verdelho de mesa, o “must”, muito tempo depois desaparecido, até ressuscitado pela Casa Brum e à venda nas lojas açorianas de Lisboa, hoje com as marcas “Donatário” e “Da Resistência”.
Três alcatras. Qual a “verdadeira”? O Divino que decida!...

Sem comentários:

Enviar um comentário