quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O bife micaelense

Os bifes tradicionais não se ficam por Lisboa. Um outro grande bife, o do meu almoço antidietético de hoje, aquele com que me criei à mesa, não tem nada a ver com origens marrarianas ou de outros cafés de Lisboa, nem sequer com os talhos da capital que o serviam à cortador. Não tem nada a ver com o bife hoje mais ou menos estandardizado que se come, do melhor ao pior, em cadeias de cervejarias, geralmente com carne a pedir melhor. Falo do bife tradicional da minha ilha, que se fazia em todas as casas e em alguns restaurantes (nas tascas serviam-se era petiscos mais baratos).
Era “o bife”, sem mais nada. Por fama de um restaurante onde já não vou há anos, e que, depois de anos de glória, me pareceu então estar a dormir sobre os louros (posso estar a ser injusto acerca da situação atual), vulgarizou-se o nome “bife à Alcides”. Eu continuo a preferir, ao revisitar a minha terra, o bife de outro sítio consagrado, o Bar Aliança. Nos últimos anos, tem-se vulgarizado uma designação que não me merece reparos: bife à regional. Tem a vantagem de ressaltar o que disse: ao contrário de alguns bifes de Lisboa, é um património familiar, popular (para quem podia) muito antigo, não exclusivo de restaurantes, cafés ou cervejarias.
O bife regional tem como primeira e essencial caraterística a qualidade da carne. Obrigatoriamente, lagarto. É nome pouco usado cá e para peça bem diferente (parte da pá), ou confundido com a nomenclatura brasileira; mas fica para outra nota comparar a diferença de terminologia de peças de corte de carne no continente e nos Açores. 
Para já, explico que o lagarto, em S. Miguel, é a peça que fica logo acima (no sentido da cabeça) do lombo, mais grossa do que este, e que se pode pedir como “cabeça de lombo”. Também pode ser pedida cá como filete, podendo-se usar ainda “filet-mignon” (uma peça mais dianteira), mas já vi talhos que não usam esta designação, vulgar no esquema de corte brasileiro e americano (“tenderloin”). Para maior confusão, na Terceira o lagarto é o ganso redondo do continente. E, mesmo em S. Miguel, há quem chame agora lagarto ao simples lombo, embora eu me lembre de lagarto ser de maior diâmetro do que o lombo e, portanto, uma peça colocada mais à frente. Que grande confusão!
Os bifes são barrados com pasta de alho pisado com massa de malagueta e pimenta preta e deixados assim durante 30-60 minutos. Vai a gosto mas sugiro, para cada bife, 1-1,5 dentes de alho grandes e uma ou duas c. chá de massa de malagueta, que se encontra, mais ou menos picante, nas duas lojas de produtos açorianos em Lisboa, Espaço Açores Gourmet e a Loja Açores. Há quem junte logo o sal, mas é de má técnica, devendo o bife ser temperado com sal só depois de selado.
São fritos ao ponto que se desejar em manteiga bem quente, mas sem queimar, com uma folha de louro. É importante o compromisso exato entre selar bem para melhor se controlar depois o ponto do bife e também reduzir depois o lume o suficiente para se destilar algum suco, essencial para o molho. Retiram-se os bifes e trata-se do molho. Pessoalmente, removo a manteiga, cuidadosamente, para não levar o fundo dos sucos da carne e junto manteiga fresca, mas tradicionalmente usa-se a mesma manteiga. Volta a aquecer-se muito bem e desglacia-se o fundo com vinho branco mais água, q. b. e em proporção a gosto ou mesmo só água. Baixa-se o lume e deixa-se apurar bem. Não deve ficar aguado mas também não é um molho cremoso como o dos bifes lisboetas. Volta-se a aquecer o bife no molho e serve-se com batatas fritas e, vulgarmente, com ovo estrelado. Mais uma especial Melo Abreu. Enquanto se espera, queijo fresco de vaca (melhor, se arranjarem, de cabra) com pão de milho e - uso relativamente recente muito recomendável - com massa de malagueta suave.
Há outra versão, respeitável, mas de que não gosto tanto. O bife não é temperado previamente e o alho inteiro, ligeiramente pisado mais a malagueta, em pedaços, são fritos ao mesmo tempo que o bife. Faz-se às vezes em velhas casas de pasto “fora da cidade”.
Nota 1 - Esta nota vai dedicada à memória do meu pai. Gostava de bem comer, mas não sabia nada de cozinha, não me lembro de ele fazer alguma coisa mais do que era este seu merecido ponto de honra: estes bifes, que fazia esmeradamente e que me ensinou a fazer.
Nota 2 - Se forem ao Bar Aliança, ali ao pé da Câmara, na R. Açoriano Oriental, aproveitem para recordar a localização de um restaurante fronteiro e lá irem noutro dia, o Nacional. Já não se usa, o que digo elogiosamente. Velha comida caseira micaelense, sem modernice. Simples, despretensiosa, à velha “pensão”. A cozinha de pensão que nos ia a casa em marmitas quando falhava a cozinheira e que para mim e os meus irmãos tinha a delícia de variar os hábitos e sabores quotidianos. Tenho uma certa ternura infantil pelo Nacional, como pela finada Comercial.

(Foto: bife do Bar Aliança)

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