sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Maravilha da gastronomia açoriana?

Não sei bem o que dizer sobre a página do suplemento de hoje do Público, P2, que fala de um candidato açoriano às “7 maravilhas da gastronomia portuguesa” (na senda de muitos concursos tontos deste tipo). É um polvo assado no forno, pretensamente expoente e ícone da cozinha açoriana ou, mais restritamente, micaelense. Não é verdade, já lá irei. E não me acusem de anti-regionalista, porque a defesa do património exige rigor e creio que, quanto às cozinhas açorianas, tenho dado muito em sua defesa. 
O jornal pagou viagem a uma jornalista para lá ir recolher, muito mal e com muitos erros, coisas acessíveis aqui a qualquer amador da história açoriana, mas que não surpreendem no quadro geral dos trabalhos do Público - que já foi um bom jornal. Erros tão de palmatória como falar de uma “localidade” inexistente, Roque. Nos Açores não há localidades nem aldeias, há freguesias (no sentido histórico-cultural, não administrativo), e uma bem conhecida em S. Miguel é S. Roque! 
É verdade de conhecimento elementar que a vida económica açoriana foi marcada por ciclos. Mas é falso que alguma vez tenha havido um ciclo da baleia, muito menos que "constituia praticamente toda a economia das ilhas". Fantasia. Foi sempre uma atividade lateral e de reduzido valor económico relativo, bem simbolizada pelo facto de os pescadores de baleia serem sempre, ao mesmo tempo, camponeses, porque baleia era só quando se ouvia o foguete da “vigia”. Nunca houve açorianos pescadores de baleia em exclusivo, exceto quando embarcados nos baleeiros americanos, E, que eu saiba, nunca se exportou carne de baleia, que era usada só localmente para "farinha" de rações mas principalmente, com o "toucinho", para derreter óleo, com muito mais valor. Em contrapartida, a articulista esquece o produto mais precioso, porque não se trata de baleias mas sim de cachalotes: o espermacete, para perfumaria. Leiam o Moby Dick!

Não tenho agora azo a explicar o que é um "ciclo", mas claramente que a baleia nunca foi. A caça/pesca à baleia foi importantíssima mas por outra razão: porque esteve na origem da emigração açoriana para o nordeste americano. Este sim é que foi até recentemente um enorme "ciclo económico", o das "dolas" enviadas pelos emigrantes.
Fora isto, alguns dos ciclos económicos que a autora indica são bem conhecidos: o pastel, os cereais e frescos de que vinham famintas as naus da carreira da Índia, muito mais tarde a laranja e o ananás, mais próximo a vaca, provavelmente a seguir o que já se começa a ver, o turismo. 

Já o vinho é duvidoso, por não ter tido grande peso na economia e na estrutura social de produção. O Marquês, protegendo o Douro, esquece os generosos das ilhas. Mesmo o Madeira é marginal, até ao séc. XIX. Nos Açores, o apogeu do vinho coincide com os cereais e o princípio da laranja, mas não determina um ciclo próprio e a história do vinho dos czares é daquelas coisas insignificantes que reconfortam o amor-próprio. A filoxera encarregou-se de encerrar esse ciclo, se é que alguma vez ele se abriu.

Muito menos existiram os delirantes ciclos da malagueta (nunca li um registo de carga de navio - e já li muitos manifestos de carga e diários de bordo - a levar malagueta para fora dos Açores!) e do chá (simples produção local, como o linho e o tabaco, depois a beterraba sacarina), inventados leviana ou descaradamente pelo jornalista. Um pouco de trabalho de casa não faz mal nenhum. Entretanto, omite-se outro importantíssimo "quase ciclo", o do carvão e da água, nos portos da Horta e de Ponta Delgada, a abastecer os modernos vapores transoceânicos do último quarto do séc. XIX (a origem do poder económico dos Bensaúdes).
Vejo que, em fase de pré-candidatura, foram apresentados outros pratos a meu ver bem mais caraterísticos, a começar pela icónica alcatra terceirense, também o cozido das caldeiras e a sopa de Espírito Santo (discordo disto, porque a sopa não é um prato em si, é parte de toda uma refeição indivisível, a “função”, que inclui sopa, cozido e alcatra). Mas quantas coisas mais ficaram de fora, daquelas que marcam bem a especificidade - e a qualidade - daS cozinhaS açorianaS: torresmos de molho de fígado, galinha recheada, morcela e linguiça (com realce especial para as de S. Miguel), sopa de nabos de S. Maria, sopa de funcho, couves aferventadas com netos, bolo lêvedo, fava seca de taberna de S. Miguel, empadas de peixe da Terceira, debulho, feijão assado, Afonso de lapas, moreia frita, "charrinhos" de molho de vilão ou de salsa verde, etc. Para não falar de sobremesas, únicas, não poderia ter aqui espaço - queijadas da Vila, bolos D. Amélia, queijadas da Graciosa, espécies, covilhetes de leite ou nata, malassadas/melaçadas, pudim de licor de leite, doce de vinagre, alfenim, até a simples mas única massa sovada, tanto tanto mais.
E, se há prato que tem muito poucas variações de ilha para ilha, que pode ser apresentado como símbolo geral, é o polvo guisado com vinho de cheiro, não este polvo assado posto a concurso, coisa boa mas muito marginal na cozinha das ilhas. Na página do concurso, escreve-se que “porém, nos Açores, apesar das receitas abundarem por todo o Arquipélago, a mais representativa, onde atinge todo o exponencial, é assado no forno.” Não sei quem escreveu isto e o que entende por “todo o exponencial" (sic, exponencial? a nossa matemática anda por baixo). Deve ser uma questão de gosto, respeitável. Já “representativo” é coisa com maior objetividade, tem significado estatístico e não é certamente o caso. Deve ser coisa de "comunicativos" amadores; não acredito que alguém da Confraria dos Gastrónomos dos Açores (página web?) tenha dito tal coisa. Se disse tal asneira e com isto aldrabou a jornalista, descreio dessa confraria.

Talvez seja má interpretação do que disse o confrade-mor, António Cavaco, por lapso de conversa corrida: que "o polvo é transversal na cozinha açoriana, pois é confeccionado desde Santa Maria ao Corvo, quer seja assado, guisado ou “à moda de”. É verdade, é transversal, é comum a todas as ilhas, como a abrótea cozida ou em filetes, os chicharros fritos, a linguiça e a morcela, os torresmos de porco. Mas não se deduza daí que se faz igualmente e tão frequentemente ou tão representativamente assado, guisado ou à "moda de" (à minha moda, por exemplo, tártaro, carpaccio, em salada com molho açoriano de salsa e açaflor, em coisa tipo paella com peixes e enchidos, frito embrulhado em polme grosso de farinha de milho, etc., etc., mas não me passa pela cabeça dizer que isto é tradicional) .

Não é como o maior caso de transversalidade das cozinhas regionais portuguesas, o bacalhau. Ninguém pode dizer o que é mais típico, se cozido, se assado, se frito, se em pastéis ou pataniscas, se trabalhado de milhentas maneiras, "à ...". É bacalhau, é tudo. Com o polvo nos Açores é diferente. Insisto teimosamente: representativo é o polvo guisado com vinho de cheiro. O resto são curiosidades, variações não significativas. Ou bizarrias de grupo de amigos bons garfos que só por isto não podem ditar regras de verdadeira cultura gastronómica.
Que eu saiba, polvo assado só se faz em S. Miguel e em poucas famílias. Um meu alter ego gastronómico diz-me que já o comeu no Pico. Desconheço se por acaso ou se por ser hábito picaroto, de que nunca ouvi falar - o que não quer dizer nada, porque, em consciência, só invoco algum saber é sobre as cozinhas micaelense e terceirense, as que sempre comi, aprendi, estudei, recolhi e faço. Mas sei que o melhor perito que conheço das ilhas do meio só faz polvo guisado.

O próprio texto do concurso - aparentemente da responsabilidade da confraria - refere este polvo assado como coisa de duas (!) únicas casas de pasto de S. Miguel. É muito pouco como representativo. Por sinal, com algumas diferenças de receita, fazia-o também a minha avó paterna, para variar, embora a sua especialidade fosse o polvo guisado com vinho de cheiro, que me gabo de fazer bem nessa boa tradição avoenga de especialidade (e sem batatas, que estragam o molho!). O polvo guisado, esse sim emblemático dos Açores e que faz as delícias dos meus amigos continentais, vem no meu livro (“O Gosto de Bem Comer”, pág. 310). As variantes de ilha para ilha são menores. Em S. Miguel leva cravinho como tempero e muita malagueta, na Terceira pimenta da Jamaica e muito menos malagueta. Nas "ilhas de baixo", como num restaurante merecedoramente conhecido de Lisboa, leva tomate, o que, para meu gosto, o adocica um pouco demais.
Na lista de pratos que indiquei acima tive o cuidado de referir apenas coisas que são praticamente exclusivas dos Açores. O polvo guisado está neste caso. Mas engana-se o meu patrício (?) confrade-mor António Cavaco, entrevistado pelo jornal, quando elogia este obscuro candidato polvo assado (obscuro não quer dizer mau) como prato único em Portugal. De forma alguma. Basta conhecer famílias de Setúbal que o têm na tradição, com receita muito semelhante a essa que vem no jornal e que eu tenho com pequenas variantes. E até, se não me engano, já o vi na ementa de alguns restaurantes da zona. Também já o comi no Minho, muito bom, assado em vinho verde tinto, num restaurante de Ponte de Lima, embora aí seja mais comum grelhá-lo nas brasas, como hoje se faz por toda a parte com o nome errado de “à lagareiro”.
Esta nota tem tom crítico, julgo que leal e sem maldade, mas não diminui o gosto que senti por ver, atrás deste processo, uma coisa que desconhecia, a Confraria de gastrónomos dos Açores. Faço os melhores votos para o sucesso da sua ação em prol da excelente cozinha tradicional das minhas ilhas (sem esquecer que são nove cozinhas relativamente distintas!). Com tempo, certamente verei um tudo nada mais de rigor do que neste caso.

Nota - Lateralmente, deixo nota de que não aconselho nada os vinhos sugeridos (por quem? Se pela CGA, fico desgostoso). É uma questão de gosto, mas qualquer deles é para mim banal (Terras de Lava), ou mesmo medíocre (Curral Atlantis), para já não dizer muito mau (Basalto tinto). Nos Açores, só aconselho, com alguma qualidade e tipicismo, o Frei Gigante do Pico e os dois verdelhos de mesa dos Biscoitos da Casa Brum, o Donatário e o Da Resistência, também outro Biscoitos, o Vinho da Pedra (claro que sem falar nos muito bons generosos Chico Maria, dos Biscoitos, na Terceira, porque agora estou a referir só vinhos de mesa).

P. S. - Entenda-se que, ao dizer acima "falta de rigor" - até falta de competência - me refiro ao "júri" (?), pelas razões que bem aponta o meu patrício. Este júri é anónimo, mas, segundo a página do concurso, é "um painel de 21 personalidades notáveis do nosso país, representantes das várias áreas da sociedade". Não sei como é que isto dá merito e crédito para se opinar sobre gastronomia e conhecimento das cozinhas tradicionais ou regionais. Coisas da televisão, a que as pessoas se prestam. E pior: a votação final está a ser feita pelo público!

P. S. 2 - Encontrei a lista inicial fornecida pela CGA. Posso ter divergências de pormenor, mas podem ver que há boa coincidência com a lista que apresentei atrás. Anoto só que, tanto quanto sei, a morcela com ananás, hoje feita emblema, é coisa recente e não tradicional, que uma confraria respeitável não devia consagrar. E até nem digo que fique mal, é uma boa combinação. Apareceu por volta do princípio dos anos 90 - lembro-me bem de me gabarem essa novidade - e foi inspirada no toque de combinação com fruta regional inventado pela restauração madeirense, o peixe espada com banana (coisa também sem tradição). Morcela e linguiça comiam-se, frequentemente juntas, ou fritas em banha ou assadas (hoje, por razões de saúde, faço-as na chapa), com ovo estrelado, muitas vezes inhames ou minhotos (uma variedade pequena e muito saborosa), batata frita para quem gostasse ou, como numa casa onde tanto vivi, com simples arroz branco. Algum dos meus amigos da minha geração ilhoa me garante ter comido em criança (depois disso já não é tradição!) morcela com ananás?

P. S. 3 (16.8.2011) - E quando leio hoje que um prato finalista, escolhido por tão sabedor júri, o coelho de Porto Santo, foi inventado de propósito para este concurso pelo cozinheiro de um hotel da ilha, para promoção publicitária, que dizer mais?

P. S. 4 (31.8.2011) - Fui injusto para com a "jornalista", que, por descuido meu de leitura, não identifiquei (o nome só vinha numa última página, já sem texto). Afinal, era Alexandra Prado Coelho, jornalista com bons pergaminhos e a quem desejo o maior sucesso nesta sua nova tarefa de preencher a falta do David Lopes Ramos. Vejo também agora que ela foi vítima da recomendação "oficial" que lhe fizeram em relação ao seu interlocutor, recomendação pelos vistos imerecida. Aqui fica o meu pedido de desculpa a APC.

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