Na sua última crítica no Expresso, queixa-se José Quitério de lhe terem servido molho tártaro a “que faltavam as queridas alcaparras”. Tem e não tem razão e serve-me de ensejo para alguma reflexão sobre a evolução de normas consagradas, com vulgarização, quase normalização, de alterações espúrias. Não sou conservador fanático, mas creio que se deve manter, embora com flexibilidade, um mínimo de regras, principalmente quando as modificações interferem com a clareza e distinção entre receitas diferentes, igualmente consagradas, confundindo o consumidor. Talvez esta minha nota traduza um grande apreço pelos molhos por parte de quem lhes dedicou todo um capítulo no livro “O Gosto de Bem Comer”.
Vamos então ao tártaro. Leva e não leva alcaparras, conforme o ponto de vista. Original e tradicionalmente não e já o tenho comido em muito bons restaurantes, de cozinha de autor, em que ele é feito à antiga, provavelmente a merecer crítica se Quitério lá for. Mas se à moderna, vulgar hoje principalmente em receitas correntes e em restaurantes pouco rigorosos, a variedade é enorme e não me parece justo, a não ser por gosto pessoal, destacar as alcaparras. Vendo tudo o que vai pela net, lendo livros mais “populares”, provando o molho em muitos outros restaurantes (e cantinas…), quase que de comum é só o basear-se em maionese. Mesmo assim, com variantes, porque se vê como maionese vulgar ou, tradicionalmente e segundo os clássicos, com uma espécie de maionese feita com gema cozida. De resto, leva tudo e mais alguma coisa, alcaparras, “cornichons”, cebola picada, picles, ervas variadas, até já vi azeitonas picadas e molho inglês, iogurte e mesmo rabanete ralado!
Mas já alguns “chefes” mediáticos que hoje fazem regra, como Jamie Oliver ou Hugh Fearnley-Whittingstall (não estou a dizer que os aprecio!) limitam-se, classicamente, ao cebolinho ou à cebola de rama. Outro moderno, não francês, de que gosto muito mais, James Peterson, também distingue bem três molhos diferentes, hoje confundidos num “tártaro” de mistura.
É a “fusão” de pelo menos esses tais três molhos consagrados, o gribiche, o tártaro e o remoulade. Se o leitor “googlar” com qualquer destas chaves, vai ver que, de muitas dezenas de receitas de qualquer deles não consegue tirar uma definição distintiva. Hoje, na prática, estão uniformizados e parece-me que com claro domínio da designação tártaro.
Há diversos molhos com base em maionese, com gema crua ou cozida. Vou referir apenas os tais três, esquecendo agora outros bem conhecidos. Omito, portanto, o aïoli (emulsão de alho em azeite, que originalmente nem gema de ovo levava), o Cambridge (maionese com anchovas esmagadas com alcaparras e temperada com as três “ervas finas” - salsa, estragão e cerefólio), o bem conhecido molho cocktail (com maionese, natas, ketchup, molho inglês, álcoois, etc.), o molho verde (maionese misturada com puré de espinafres ou agrião) e a sua variante Vincent (com ovo cozido picado).
Tradicionalmente, segundo a boa codificação da cozinha francesa - em que o respeito pelas designações tradicionais ainda hoje se mantém vivo - o molho tártaro, tal como descrito por Escoffier, por exemplo, é uma maionese feita com gema cozida e adicionada de cebolinho picado e, opcionalmente, de rama de cebola picada e pisada em puré. Só isto. É também a receita ainda hoje publicada no Larousse Gastronomique. Com alcaparras, “cornichons”, clara de ovo cozida e picada e “ervas finas” temos o molho gribiche. Semelhante, mas maionese de gema crua também com alcaparras mais “cornichons” picados e ervas a gosto é o “remoulade”. Tudo junto é essa coisa indefinida tártaro-gribiche-remoulade, vulgarizada hoje como tártaro.
Concluindo e voltando a Quitério, dou-lhe razão se a sua atitude for a de aceitação da evolução dos usos culinários e gastronómicos, embora frequentemente lhe veja, e bem, sinais de maior rigor. Não lhe dou razão quando define a seu modo um “tártaro” que ainda não está hoje entendido sem ser uma coisa eclética e ambígua. Mais, quando isto condena à morte por confusão outros molhos igualmente respeitáveis e com individualidade marcada. Gribiche e remoulade, molhos que um gastrónomo com os pergaminhos de Quitério certamente conhece, no seu bê-à-bá de muitos anos de crítica culinária, embora não sendo cozinheiro nem tendo de o ser.
Quitério gosta de alcaparras no tártaro e está no seu direito, quando a noção deste molho está em evolução. O que não pode é usar esse gosto particular para criticar um restaurante que, se calhar, lhe estava a servir um genuíno molho tártaro. Não é a primeira vez que Quitério se deixa levar, como crítico, pelo Quitério subjetivo que tem direito ao seu gosto pessoal.
P. S. - Por coisa elementar de cortesia e de abertura ao debate, tentei ao máximo contatar José Quitério, para lhe dar a conhecer este texto e lhe propiciar resposta. Não consegui. O seu blogue no Expresso não tem endereço de correio e não permite comentários. Dizem-me que ele não tem computador e não acede nunca à net. Embora seja coisa bizarra para quem hoje comunica, está no seu direito, não posso fazer mais nada. Mas ninguém no Expresso o convence de que já fica mal tão anacrónica sobranceria? Que quem opina e quem critica tem o dever de se sujeitar à contra-crítica? O tempo dos venerandos budas já passou.
P. S. 2 - Como é que me esqueci de um quarto molho, sem nome, que vem da minha meninice e ainda hoje faço tão frequentemente? Aprendi-o com o meu pai, que era cozinheiro só de duas ou três coisas, mas esmerado nessas coisas poucas mas importantes. Com peixes, bacalhau ou conservas, vindo o ovo cozido, separava a gema e a clara. A primeira era muito bem esmagada com uma colher de vinagre, malagueta, açaflor e um pouco de mostarda. Batia bem, mesmo no prato, com o garfo, com azeite. Juntava-se depois a clara cozida, picada. Hoje também acrescento salsa picada, pimenta preta e um toque de pimenta da Jamaica.
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