Retomo a escrita neste blogue com pretexto no almoço de Ano Novo, ano que não promete muito mas que ao menos traz uma boa notícia para os continentais apreciadores de alcatra. Várias vezes escrevi que a principal limitação à confeção no continente da alcatra terceirense, cada vez mais conhecida e apreciada (mesmo que de qualidade pouco requintada) pelos visitantes das minhas ilhas, era a falta do típico alguidar. É mesmo indispensável, pasmando eu por ainda hoje ter ouvido que alguém a fez numa panela de pressão e que “ficou muito boa”! O alguidar de alcatra não é uma bizarria ou um mito. O seu tratamento prévio, a patina, a forma a fazer confeção interna do calor, a dimensão em relação à quantidade de carne, para a poder ir virando, tudo isto faz o segredo de uma boa alcatra.
E já há cá o alguidar, até numa capacidade mais conveniente para quem não fizer alcatra para uma dúzia de convidados. Vende-se no Espaço Açores, na R. S. Julião, 58, em Lisboa. É um alguidar de 1,5 l, metade do tradicional, que dá bem para uma refeição de quatro pessoas. Tem de ser tratado antes de usado pela primeira vez: deixar uma semana, com duas mudas, cheio com uma infusão de água com 1 cebola aos quartos, 6 dentes de alho esmagados, 2 folhas de louro e um ramo de hortelã.
A receita é essencialmente a que tenho já descrito e que vem no meu livro “O gosto de bem comer” (pág. 312), mas há que fazer algumas alterações, condicionadas pela menor dimensão do alguidar.
Desde logo, a redução a metade da quantidade dos ingredientes: 700 g de folha de alcatra, 300 g de aba grossa, 1 cebola grande, 2 dentes de alho, 3 c. sopa de manteiga, 1 osso com tutano, 125 g de toucinho de fumo, 8 grãos de pimenta preta, 5 grãos de pimenta da Jamaica, 1 folha de louro, sal grosso q. b. , 4 dl de vinho branco.
Na alcatra em dose tradicional, a carne é cortada em pedaços grandes, de tal forma que, depois de pronta, ficam com cerca de 6 cm de lado. Para este alguidar pequeno, têm de ser um pouco mais pequenos, para se poder acamar e depois ir virando facilmente. Cortei, em cru, pedaços com cerca de 7 cm, que ficaram no fim com cerca de 4,5-5 cm. Não é o meu olho de menino, mas não vem mal ao mundo.
Outro problema é o osso, obrigatoriamente a fornecer bastante tutano à alcatra, osso que, despejado do tutano, se retira a meio. Um osso com bastante tutano é muito grande. Lembrei-me - e resultou bem - de comprar uma fatia de osso buco e começar por cozê-la durante alguns minutos, só o suficiente para remover facilmente a carne, que fica para outros usos. O osso tem a dimensão adequada a este alguidar pequeno e tem muito tutano.
Não esquecer que a quantidade que indico é para o verdadeiro e antigo toucinho de fumo, que já não consigo encontrar. Desde há anos que os meus irmãos e eu usamos bacon, como hoje na Terceira. Mas com um pormenor muito importante. O bacon, ao contrário do toucinho fumado, tem carne, que dá um sabor demasiadamente forte à alcatra. Por isto - que desperdício - só usamos a gordura do bacon e o peso (100 g) refere-se é a esta gordura. Para esta minha alcatra, encontrei uma coisa ótima, que não conhecia: barriga fumada. Tem muito menos carne e esta é mais suave. Usei toda a peça, carne incluída, 125 g.
Passo ao vinho. Como já tenho discutido milhentas vezes, é genuinamente tradicional usar o vinho de cheiro, como na generalidade dos restaurantes rústicos terceirenses. Assim se habituou o povo quando a filoxera fez produto caro e raro do vinho branco, quer o local, verdelho, dos Biscoitos, quer depois o importado. No entanto, não há comparação de requinte entre uma alcatra com vinho branco e com vinho de cheiro. O problema era encontrar cá o Biscoitos. Por isto, fazia a alcatra com um vinho também tradicional dos Açores, o arinto, como um Bucelas, acrescentando por vezes um pouco de generoso meio-seco. Agora, também já podem comprar cá Biscoitos - Donatário - na Loja Açores (Av. Elias Garcia, 57, Lisboa).
Finalmente, os truques de boa técnica: 1. Forno bem pré-aquecido a 200º (se a gás, um pouco abaixo da chama máxima). 2. O osso no fundo, camadas alternadas de carne, cebola, alho, manteiga, temperos, sendo a última só de carne, tudo bem acamado. 3. Ao princípio, 3 dl de vinho e água a cobrir; cerca de uma hora depois, o resto do vinho e mais um pouco de água, dando a primeira volta às carnes. 4. Voltar a carne de 30 em 30 minutos (vá lá 45) ou quando se vê que começa a crestar à superfície. 5. Ir acrescentando só água, para manter o nível adequado de molho (não se pode descrever, só tendo prática, mas diria que a um nível de cerca de 1-1,5 cm abaixo da superfície da primeira camada de carne). 6. Ao fim de cerca de 2 horas, remover o osso, deixando o tutano.
Quanto tempo? Depende do forno e só se sabe olhando para o crestado da carne e para o molho, que deve estar apurado mas ainda com a manteiga bem emulsionada em líquido aquoso. Na Terceira, nos impérios, é costume cozer primeiro o pão e depois usar o forno ainda muito quente para a alcatra, mexendo-a com frequência, como disse. Ao fim de algumas horas, a alcatra está quase pronta, o forno já está a arrefecer e a alcatra apura até ao dia seguinte.
Em casa, reproduzo mais ou menos este processo. No caso desta mini-alcatra, assei-a a 200º, como disse, cerca de 4 horas (no alguidar grande pode ir quase às 6 horas), desliguei o forno sem o abrir, e deixei lá o alguidar mais uma hora. Abri o forno e deixei arrefecer. No dia seguinte, compensei com mais água o molho que se tinha reduzido um pouco e aqueci a 150º durante cerca de 1 hora, acrescentando um pouco de água quando necessário.
Comemos à boa maneira, só carne e molho, molhando malcriadamente pedaços de pão rústico. Servir como agora é moda sobre fatias de massa sovada não me calha. Adoçica o molho e desfaz-se. Porque é que quem inventa modernices contra a tradição não tem técnica para tal? É que qualquer bom cozinheiro sabe que inventar de novo é fácil, modificar mantendo o essencial das coisas é que é difícil.
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