Bife à café é o mesmo que bife com café? Não é só questão de sabedoria gastronómica elementar, é também de domínio primário da gramática portuguesa. Já lá vão bastantes anos que me defrontei com esta questão. Jovem a iniciar-se na restauração lisboeta, claro que não perdi os bifes, os da época: Nicola, Império, Vavá, Portugália, José Ricardo, 1º de Maio, Relento, tudo bifes à café, rivalizando em pequenos pormenores mas todos respeitando o essencial, de que falarei. Todos fritos, que não havia então a mariquice do grelhado. Na altura, tinha-se perdido de memória o Marrare e o Jansen, figurando ainda o Faustino como chamado “à portuguesa”, mas já com fiambre a substituir o presunto caro. Diferente, magnífico, só lá no outro lado do mar, o meu bife à micaelense, com alho e malagueta.
Nessa altura, uns tantos de nós já casados precoces, com casa e gosto de bem comer e de fazer bem comer os amigos, coisa que cultivávamos era o “nosso” molho de bifes. O meu, como os poemas de juventude que nenhum bom poeta publica, era uma charunfada!
A minha tal experiência de primeiro horror foi na minha cantina. Cantina, dirão, que quer ele? É que, como verão a seguir, não era cantina vulgar, a da Gulbenkian. A primeira vez que serviram bife à café era intragável, tinham despejado no prato a bica que só queria no fim da refeição. Protestei e a amável superintendente foi buscar a ficha da receita, do supervisor-mor da cantina. Lá estava, é verdade, "para cada pessoa, juntar ao molho uma colher de sopa (!) de café em pó". E quem era esse supervisor, conselheiro? Mestre Silva.
Também hoje, na Pública, se opina sobre os segredos da Trindade, e claro que sobre o seu molho de bife:
“Há quem diga que o segredo está no molho, que pode ser confeccionado com manteiga, leite, café (diz-se que de cevada), mostarda e uma pitada de farinha (talvez, até, Maizena). Assim, simplesmente, tal foi o resultado de uma busca instantânea na Internet que descreve o molho à Trindade (ou à Portugália) como uma cama fofa para os bifes de alcatra, vazia e lombo, estes feitos sela para o ovo estrelado, tendo as batatas fritas como acólitos de guarnição.”
Dou de barato a questão das carnes. Não faço bife de alcatra, mas não critico por isso o jornalista, não se pode saber de tudo. Mas esquecer o pojadouro como carne tradicional de bife lisboeta é não ter feito bem o trabalho de casa. Aquela dúvida entre farinha e maizena também é mesmo metafísica... A tal busca na internet deve mesmo ter sido instantânea. "Assim se fazem as cousas", hoje, na comunicação social.
Mas vamos ao café. O requinte da cevada torce-me de riso! Café no molho de bife é coisa pateta, da mais ignara pseudo-grastronomia. Há muitas variantes do molho à café, como disse, rivais. Mas a regra base está bem descrita por Olleboma e por Maria de Lourdes Modesto. Sendo dela o livro mais conhecido, reproduzo:
Mas vamos ao café. O requinte da cevada torce-me de riso! Café no molho de bife é coisa pateta, da mais ignara pseudo-grastronomia. Há muitas variantes do molho à café, como disse, rivais. Mas a regra base está bem descrita por Olleboma e por Maria de Lourdes Modesto. Sendo dela o livro mais conhecido, reproduzo:
À manteiga ou margarina da fritura, “adiciona-se a restante manteiga e o leite frio, onde se desfez a fécula e deixa-se cozer mais ou menos, conforme o gosto. Durante este tempo, agita-se a frigideira constantemente para que o molho não engrosse. Junta-se um fio de sumo de limão e a mostarda.” Nada mais simples, a permitir os tais segredos de condimentos e de técnica. Mas café, meus senhores?!
Falei de técnica. Neste caso, como em tantos, é metade do segredo. O molho não é nada sem a devida confeção e tempero do próprio bife, do desglaciar da gordura de fritar e do seu fundo (truque meu: rejeitar a gordura de fritar, sem levar os sucos, flamejar com um pouco de aguardente, desglaciar bem com um pouco de água e continuar com a preparação do molho). Há tempos, fiquei sentado com vista para a cozinha de onde saiam os “afamados” bifes. Numa chapa, grelhava-se o bife, com meio centímetro de espessura. Noutra “estrelava-se” o ovo. Ao lado, uma grande tigela com molho pré-fabricado. Para servir, sacava-se de uma frigideira de barro, que não tinha nada a ver com a história, bife, ovo por cima, batata congelada frita, uma colherada do tal “molho”. Que seja assim ao balcão dos Portugália de centro comercial, aceito e até como em termos de preço-qualidade e com filosofia de "fast food", mas num dos tais restaurantes especializados em bifes, de que falo logo a seguir?
Já agora, por experiências recentes, acho que se mantém bom, mas mais deslavado, o molho da Portugália, principalmente sobre o seu “bife à inglesa”; bom mas sem nada de marcante, o da Trindade; melhor talvez o da Lusitânia, a ir para muito bom; renascido, a obrigar-me a nova visita, o do Império libertado da seita; claramente decadente, "fast food" (mas só lá fui uma vez, recentemente) o do Relento. Ao Nicola já não vou há muito tempo. E se, como disse, reina a rivalidade, desculpem lá mas o meu fica só para amigos do peito. Alternando nessas cervejadas com o Marrare e o regional micaelense.
P. S. (18.1.2011) - Diz-me o meu alter ego gastronómico que já viu, mas não tinha presente de memória, uma receita de um cozinheiro francês de turnedó com molho de café e até enfeitado com alguns grãos de café. Fui procurar nos meus livros e na net e não encontrei. Escrevo isto antecipando alguma crítica com este argumento. Nada tenho contra uma criação deste tipo, embora eu não goste. O que não justifica é a sua transferência, se por acaso assim foi por via de algum emigrante, para uma tradição portuguesa que lhe é alheia. Diferente são pratos de carne de raiz centro-americana com cacau. Nunca fiz, mas as referências que tenho, de bons livros, parecem-me genuínas.
P. S. (18.1.2011) - Diz-me o meu alter ego gastronómico que já viu, mas não tinha presente de memória, uma receita de um cozinheiro francês de turnedó com molho de café e até enfeitado com alguns grãos de café. Fui procurar nos meus livros e na net e não encontrei. Escrevo isto antecipando alguma crítica com este argumento. Nada tenho contra uma criação deste tipo, embora eu não goste. O que não justifica é a sua transferência, se por acaso assim foi por via de algum emigrante, para uma tradição portuguesa que lhe é alheia. Diferente são pratos de carne de raiz centro-americana com cacau. Nunca fiz, mas as referências que tenho, de bons livros, parecem-me genuínas.
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