Ainda escrevendo na anterior página Do Gourmet, deixei uma promessa que agora vou cumprir, pelo menos parcialmente. “Fiquei a saber que, para além da ementa, há uma coisa ‘de que as pessoas já não gostam, só de encomenda’: o clássico peixe assado no forno à portuguesa. Claro que lá irei, mas tem de ser a quatro. E com boa escolha do peixe. Essa é toda outra história, a do peixe para assar (como, aliás, o peixe para cozer, o peixe para fritar, o peixe para grelhar) com muito da minha tradição de menino. Não me venham dizer que os portugueses sabem comer peixe. Sabiam! Fica para a próxima.”.
A próxima é hoje, e essencialmente sobre esta coisa aparentemente banal: que peixe para que confeção de peixe? Isto tem de puxar aos meus hábitos de infância açoriana. Em relação a peixe, é difícil, porque muito bons peixes dos mares açorianos dificilmente se encontram cá (a veja, o mero, o bonito, a serra, a anchova, o alfonsim, a bicuda, o lírio, muitos mais) ou são lá espécies ou variantes de muito de melhor sabor e textura, como, paradigmaticamente, o carapau (o chicharrinho açoriano), a abrótea e mesmo a garoupa.
Na tradição açoriana - como aliás na portuguesa, em geral, salvo alguns portos de mar - não entra o moderno grelhado. Por isto, julgo que ainda não há uma verdadeira sabedoria portuguesa em relação ao peixe grelhado, em termos da escolha dos melhores peixes para grelhar, da técnica diferente de grelhar peixes gordos e peixes magros, peixes pouco espessos e peixes grossos. Se fino como linguado, grelhado seco que nem sola. Se grosso, escalado. Até o uso hoje vulgar do azeite e vinagre, em vez do molho de manteiga e limão, com salsa (eu diria que alternativamente cebolinho ou cerefólio), que pede um bom peixe grelhado.
Peixe da minha meninice comia-se cozido, em água ou ao vapor, quase que invariavelmente abrótea. Nunca às postas, como cá a pescada, antes o peixe inteiro, a servir em pedaços ao longo do lombo, a lascarem. Fritos, claro que os "charrinhos", mas também todos os peixes pequenos, tantos que não vou enumerar, mas referindo alguns que julgo serem pouco vulgares por estes lados: besugo, cantarino, boga, tainha, peixe rei. Ao menos o bodião cá vai aparecendo cada vez mais. Também excelente para fritar, em lombos, abundante cá e lá, o goraz pequeno ou o sargo (muito bem que o queiram grelhado, mas há outras formas de o fazer). Em contrapartida, não me lembro de lá comer coisas cá tão populares como a faneca, a salema ou a pescadinha. Ou, como peixe grande, a corvina.
Exceção para dois peixes grandes para fritar, às postas, a garoupa e a moreia. Moreia nunca cá vi à venda. É excelente, com muito sabor em que entra a abundante gordura, não enjoativa. Tem uma pele grossa que, ao fritar, se destaca da carne e a protege de fritura demasiada, não deixando o peixe secar. Também para fritar, mas como filetes, a abrótea. Para meu gosto, filetes inigualáveis, que os visitantes podem comer em qualquer restaurante razoável nos Açores.
Também, mais à moderna do que a tradição de cozido/frito/assado, dois grandes peixes açorianos para pratos mais elegantes, salteados, estufados, em lombos ou medalhões, o cherne e o mero (Epinephelus guaza). Sobre o porquê de eu indicar os nomes taxonómicos, ver nota no fim.
Também, mais à moderna do que a tradição de cozido/frito/assado, dois grandes peixes açorianos para pratos mais elegantes, salteados, estufados, em lombos ou medalhões, o cherne e o mero (Epinephelus guaza). Sobre o porquê de eu indicar os nomes taxonómicos, ver nota no fim.
Mas tinha ficado de falar era sobre peixe para assar. Talvez por desconhecimento meu da tradição continental, julgo que a variedade de peixes para assar, nos Açores, é bastante maior. E não é que o procedimento seja muito diferente: peixe inteiro com alguns golpes de faca, cebola às rodelas, alho, tomate, eventualmente colorau, louro, salsa, sal e pimenta, azeite, vinho branco, batatas aos cubos. A mais, à açoriana, malagueta, açaflor e - na Terceira - pimenta da Jamaica.
Cá, o rei (decadente, porque já não se faz peixe assado) é o pargo, Sparus pargus. Também o imperador, da mesma grande família, Beryx decadactylus. Já tenho visto também, e bom, o capatão, Dentex gibbosus, com o senão de ser muitas vezes grande demais para uma família pequena. Também vejo nas peixarias outro familiar do pargo, também usado nos Açores, o pargo mulato ou chaputa, Plectorhinnus mediterraneus.
Esta do mulato, escuro, lembra-me os meus hábitos açorianos. Se formos à cor dos peixes mais usados cá para assar, é classe vermelha ou rosada. Nos Açores, são principalmente peixes de pele escura. Começa logo por, de longe, ao que me lembro, o peixe mais apreciado para assar - com a excelente variante de recheado - ser a garoupa de tamanho médio. Não tenho ideia de o pargo e os muitos peixes que em inglês se agrupam na designação genérica de “bream”, pargos e todos os seus primos, rivalizarem com a garoupa.
Isto não exclui muitos outros excelentes peixes açorianos para assar. É pena que não seja fácil encontrá-los mesmo lá, nos restaurantes, mas se ficarem em sítio açoriano em que possam cozinhar, recomendo vivamente uma ida à praça e a compra de um destes: anchova (Pomatomus saltator), bicuda (Sphyraena sphyraena), serra (Sarda sarda) - que também há cá, como sarda, mas mais pequena e de muito pior qualidade - encharéu (Pseudocaranx dentex, outro dentex), o excelente lírio (Seriola sp.). Até o goraz (Pagellus bogaraveo), quando grande.
Nota final para dois casos exemplares. Há um peixe que fazia parte da minha mesa de menino e que hoje está pelas ruas da amargura, a cavala. Porque não dá para cozer, muito menos para grelhar, só para assar ou então, como faço tantas vezes, para marinar crua, em filetes, estilo maatjes. Outro é peixe quase desconhecido cá, mas que vou vendo muito ocasionalmente nas peixarias, o rocaz (Scorpaena scrofa). Excelente, para medalhões, lombos, salteados ou estufados. E com o melhor fígado, amariscado, a seguir ao salmonete.
Nota: a referência aos nomes taxonómicos não é "show off" de erudição. É só para permitir aos leitores fazerem "copy-paste" no Google-imagens ou na Wikipedia e verem como é o peixe, tentando depois encontrá-los nas peixarias.
Publicação muito pedagógica e evocativa, a fazer pensar em tradições que urge preservar a bem, mais que não seja, da preciosa diversidade culinária e gastronómica.
ResponderEliminarFazendo algum desconto quanto ao tom algo apologético do autor, a que já nos habituou quando se abordam as "suas" queridas ilhas, pois a diferença não tem que ser forçosamente reduzida a uma escala de valores, para mais numa área em que cada sub-cultura, num mesmo país, desenvolve necessariamente modos diferentes de apreciar a sua comida e o modo como é preparada. Parece-me, por exemplo, que o azeite e vinagre, longe de ser "uso hoje vulgar" é antes uma tradição de antanho em muitas zonas de grande tradição pesqueira do continente e onde se come peixe grelhado de todo o tamanho há muitos séculos, com azeite e vinagre, sem que isso constitua motivo para um atestado de menoridade gastronómica.
Duas notas em relaçãop a espécies: a moreia é muito vulgar em todo o sul de Portugal, sendo até obrigatória na caldeirada algarvia. Na costa alentejana, onde é muito usual, costuma comer-se frita às postas, depois de uma semi-secagem aberta em canas, ao sol, por 24 a 48 horas e frita depois em azeite até que a parte gorda da barriga fique reduzida a um quase-torresmo delicioso.
Já o Scorpaena scrofa, aqui conhecido por rascasso vermelho ou só rascasso, é um peixe de profundidade pescado à linha e não sendo vulgar (nunca em supermercados)é frequente nos mercados, costumando ser necessário ir cedo pois é muito procurado pela delícia que é.
Curiosamente, acabo de jantar um Scorpaena scrofa assado no forno,que será tema de um post na próxima sexta feira e irei utilizar outro para o célebre "pastel de krabaroka" do grande Arzak de San Sebastian. Comprados no mercado da Boa-Hora, na Ajuda.